Em dois tempos …

Entrei no Mercado Municipal pelas 11.30h e, talvez pelo adiantado da hora, não vi ninguém com coisas à cabeça. Procurei uma jovem para tentar saber se as pessoas novas ainda usavam esse método de transporte. Com alguma dificuldade, lá encontrei uma rapariga com cerca de vinte anos que vendia fruta numa banca bem recheada e variada de produtos. Com uma atitude um pouco desconfiada e envergonhada lá me foi respondendo. Não transportava nada à cabeça, por vezes usava no ombro. Mas, como que a despachar-me indicou-me as senhoras da frente que talvez ainda o fizessem. Agradeci e dirigi-me a duas senhoras que conversavam. Tinham cestos, baldes e sacos colocados no chão com batatas, cebolas e feijão. Apresentei-me, perguntei se podia conversar um bocadinho e disse qual a razão das minhas perguntas.

Comecei por indagar se ainda carregavam aquelas coisas à cabeça — Agora já não! A senhora mais velha saiu e fiquei então à conversa com a dona Rosa. Uma mulher de 50 anos com face rosada e ar saudável. Sempre de pé, nem banco tinha, achava que assim as freguesas a viam melhor, logo, vendia mais. Vive em S. Martinho de Dume e sempre viveu. Trabalhava a terra e dois dias por semana, à terça feira e ao sábado vem vender o que produz. Antes vinha também à quinta. No Inverno trazia nabos e grelos e no Verão tomate e outros produtos.

Carregou os cestos à cabeça desde os catorze, quinze anos, até aos vinte. Com algum entusiasmo contou que vinham todos em grupos de dez ou doze homens e mulheres. Às vezes dois ou três da mesma casa, quando havia muito para vender. Com os cestos à cabeça, demoravam uma hora e meia de S. Martinho de Dume ao mercado de Braga, a pé pela estrada e por caminhos. Eram mais as mulheres, mas alguns homens, apesar de normalmente porem os pesos ao ombro, também os traziam à cabeça — Ainda hoje o meu tio traz o mato à cabeça quando vai ao monte. Paravam sempre três vezes nos pousadouros que existiam pelo caminho. Pousadouros eram muros com altura ao nível da cabeça onde se encostavam e, rodando ligeiramente o cesto, o pousavam para descansar.  Se não cabiam todos revezavam-se para descansar nesses pousadouros. Não era possível baixarem-se para pôr o cesto à cabeça, podiam-se magoar. Eram ajudadas por duas pessoas ou tinham de colocar o cesto ao nível da sua altura para, com pequeno movimento de rotação o colocarem na cabeça. Usavam sempre a rodilha, um lenço que andava normalmente com elas, enrolado na altura, para pôr entre a cabeça e o cesto. Se fosse pouco peso e pouco tempo podiam prescindir da rodilha, senão, era fundamental. O maior peso que carregou foram trinta quilos. Usavam este método porque, para andar, dava mais jeito. Não podiam levar nada nas mãos para deitar a mão ao cesto se fosse preciso.

Quando tinha mais ou menos vinte anos o pai comprou uma carroça puxada a cavalo que trazia as hortaliças à cidade. A dona Rosa adorava essas viagens, depois era o trator e hoje é de carrinha que o marido faz o transporte. Além dos cestos que a senhora prefere, as coisas da terra ficam melhor nos cestos, também usa baldes grandes porque são práticos.

Aprendeu a técnica com a mãe de uma forma natural, imitando-a desde muito pequenina quando ia buscar isto ou aquilo. Não custou nada. Não se lembra de ter caído, nem o cesto. Nem se lembra de nenhum acidente relacionado com o transporte de mercadorias à cabeça. Nunca sentiu que lhe fizesse mal. Hoje tem problemas de coluna, apesar de nunca ter ido ao médico ou feito tratamento, de vez em quando doem-lhe as costas e os ombros — estas coisas gastam.

Texto e imagem: Maria Helena Trindade (Responsável pela Gestão de Coleções do Museu Nogueira da Silva, Braga)

Publicado a: 09-03-2022

Recolha realizada em dezembro de 2002, decorrente de testemunho recolhido no Mercado Municipal para a disciplina de Antropologia das Atividades Corporais lecionada pelo Prof. Jean-Yves Durand, no âmbito do Mestrado em Estudos da Criança, especialização em Comunicação Visual e Expressão Plástica/IEC/UM. O objetivo era tentar perceber o transporte de objetos à cabeça, quem o fazia e como.

 

LOCALIZAÇÃO

LOCAL: Braga

LATITUDE: 41.55363960206056

LONGITUDE: -8.428114141802986