DO PORTO AO PORTO – AS ESQUINAS

Passando pelas esquinas da minha cidade, por onde caminham em silêncio almas perdidas e sem chão, deparo-me com a mulher e a criança, inertes, com aquele olhar vazio, de fome. Eu as vejo em cada esquina, sentindo a culpa de uma sociedade que falhou, miseravelmente. Não há presente para elas, apenas o passado e o futuro se encontrando, bem na esquina, surpresos e tentando entender o que os une. Talvez seja o olhar da fome, talvez seja apenas o vazio.

Na minha cidade há esquinas que se multiplicam na multidão da passagem. São esquinas em destaque, as esquinas do dinheiro, símbolos vivos das sociedades em (des)construção. Presenças de um poder vigente que nos inebria e ofusca. Os bancos, essas catedrais do tempo presente, dão-nos, pois, a ilusão de um acesso de todos a tudo. Pura ilusão num tempo egoísta, gasto de valores e valentias de miséria, num vazio que multiplica a desgraça.

ESQUINAS BREVES

Esquina de passagem

na passagem veloz

que dobramos expectantes para o lado de lá

a praça, a rua, o horizonte variável que nos surpreende

Esquina do tempo

no tempo fugaz

que nos absorve os instantes de cada dia

noutros dias que virão

Esquina da oração
na oração devota

que transporta o crente

nas asas de realidades flutuantes

Esquina do dinheiro

no dinheiro que é gás

que liberta, inebria, junta, enriquece

e que separa.

ESQUINAS OUTRAS

Esquinas a percorrer, transpor

para o outro lado

Esquinas de pedra, papel, tecido, madeira…

umas de pensamento

apenas

envolventes

outras de passagem

também.

Esquina, ponto, linha, forma

Esquina, união, separação, convergência

transição, desvio, momento…

poema que

agarra, liberta

e nos atira para o outro lado

o lado de lá.

Esquina que multiplica

o olhar

um agora, outro depois, um outro ainda

a rua, a avenida, a praça, a loja, o jardim, o horizonte

um amigo, um acaso, uma descoberta, uma surpresa

uma caixa, duas faces

esquerda, direita

uma aresta do tempo.

Esquina alimento do olhar

ritmo, postura, vontade de ir, ir e ir até além

onde outra esquina espera

a passagem

ainda outra e mais outra

perto, longínqua.

Aqui e além

Além.

Esquina do beco à imensidão

das estrelas

lá longe, bem longe

ausentes de dia

luminosas à noite

radiantes

no céu

céu.

Esquinas na catadupa de muitas

esquinas do mundo

mundos diversos

diversos e múltiplos

múltiplos e surpreendentes

na apoteose do momento

fugaz que se esvai

esvai.

ESQUINAS POR CONTAR

Esquina da conversa

Esquina do prazer

Esquina do abastecimento

Esquina da miséria

Esquina da espera

Esquina da arte

Esquina da cultura

Esquina da música

Esquina do descanso

Esquina da memória

Esquina que partiu

Esquina do desassossego

Esquina vazia

Esquina do fim

Esquina rugosa

Esquina lisa

Esquina da cor

Esquina do absurdo

Esquinas com futuro

Esquina de nós

 

Textos e ensaios visuais:

Francisco Mesquita (Porto, Portugal / CECS – Universidade do Minho) & Madeleine Müller (Porto Alegre, Brasil /ESPM)

Publicado a: 29/12/23

LOCALIZAÇÃO

LOCAL: RS

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