Cores em disputa: as ruas de Fortaleza, da política ao futebol

Ao perambular pelas ruas de Fortaleza (CE-BR) em três diferentes dias do mês de novembro passado, as cores vermelha, verde e amarela sobressaíam e vibravam com diferentes mensagens: do apoio a candidatos e projetos antagónicos de País, ao (quase) uníssono gosto pelo “espetáculo da bola” – para usar um jargão do jornalismo esportivo.

A dimensão imaginária da cidade, como nos fala o sociólogo Armando Silva (2001), toma forma na expressão estética-ativista de seus habitantes. O simbolismo das cores que estampam varandas, bandeiras, adesivos automotivos e roupas preenchem as ruas. São estratégias cotidianas de ocupação e disputa pelo espaço urbano, mas também de afirmação política e de engajamento, num processo de convencimento do outro.

No pleito para a escolha do presidente do Brasil, dia 30 de outubro passado, venceu o pessoal de vermelho. Foi eleito o projeto de Brasil progressista, inclinado à esquerda e protagonizado por Lula. Nas ruas, o que acompanhamos ao longo do mês de novembro foi a ressaca desse processo e a chegada de um novo tempo: o do futebol.

O coro polifônico que conduz a nossa experiência de cidade (Canevacci, 1997) é dinâmico. Transforma-se no curto espaço de dias, entre vozes dissonantes e confusas do cotidiano. Mistura política e desporto, ativismo e diversão, discurso de ódio e festa, em uma sobreposição de acontecimentos e posicionamentos que se entrelaçam com o calendário.

O primeiro dia destes percursos fotográficos aconteceu em 11 de novembro, ainda com as marcas da campanha política vivas e evidentes (Imagens 01 a 04). O roteiro escolhido foi o entorno da comunidade do Campo do América, uma das tantas ilhas de habitações populares imprensadas em meio aos edifícios de classe média, no bairro Meirelles. Como o próprio nome sugere, o futebol tem lugar de destaque na história da comunidade. As ruas começavam a ser enfeitadas e o comércio já tematizava a Copa do Mundo nas suas ações publicitárias (Imagem 05 e 06).

Nas andanças dos dias seguintes, um pedaço de adesivo automotivo com bandeira do Brasil (Imagem 07) ilustra os ecos da campanha, que se desfaz ao passo em que se dissipa a efervescência da disputa partidária. Uma segunda visita ao Campo do América, no dia 24, data da estreia do Brasil na Copa, mostrou ruas ainda mais coloridas e uma mudança mais contundente no uso destas cores.

O vermelho aparece solitário: primeiro numa toalha com o rosto do presidente eleito (Imagem 12), que teimava em estar exposta na sacada de uma casa; depois, na camisa de um torcedor português (Imagem 13), que, assim como os brasileiros, aguardava a estreia de sua seleção.

Já o verde e o amarelo chegam com força redobrada. Desde a campanha que elegeu Bolsonaro, em 2018 (ou antes disso!), até alguns dias atrás, seus simpatizantes desfilavam com o uniforme da seleção de futebol, reluzindo um verde e amarelo com reflexos neofascistas. Apelavam a um ufanismo “patriótico” que causava a muitos outros uma repulsa a estas roupas e às cores nacionais.

À medida que a Copa do Mundo se fez, estes simpatizantes da extrema-direita foram perdendo a primazia da vestimenta oficial (Imagem 08 a 11). No terceiro dia de incursão fotográfica, fica evidente que a mensagem bolsonarista, antes indissociável da camisa da seleção, estava diluída ou já desfeita. É o futebol que passa a ditar as cores.

Nas ruas do Centro da Cidade, roteiro do passeio do 28 de novembro, não se andava um metro sem esbarrar com alguém vestindo o futebol. O comércio ambulante, as lojas de roupas a até o Mercado Central de Fortaleza, dedicado ao artesanato, vendiam futebol (Imagens 15 a 19). Era o dia do segundo jogo do Brasil.

O bolsonarismo até que teimava, exibindo o verde e amarelo da extrema direita, aglomerando-se em frente ao quartel da 10ª Região Militar de Fortaleza, que também fica no Centro (Imagem 21). O uso do uniforme da seleção e das cores nacionais para demarcar as ideias do grupo, entretanto, se mostrava vazio e ineficaz. Na imprensa, já se noticia que, em outras cidades brasileiras, alguns organizadores de protestos pedem que se evite utilizar as ditas cores, como se pode ver aqui e aqui.

No curto espaço deste ensaio, cabe deixar anotada uma cena deste último passeio que ilustra a fugacidade dos sentidos que habitam o nosso cotidiano. No trânsito, em uma motocicleta, um torcedor de camisa da seleção parado no semáforo observa a ocupação bolsonarista verde-amarela (Imagem 14). Para a mesma camisa-símbolo, dois distantes conjuntos de significados. De um lado, um homem veste o futebol, o “esporte do povo”, “a paixão nacional” – mais alguns jargões. Estão à espera da bola que correria logo mais, à tarde. Do outro, barulhentos maus perdedores clamam pelas balas de um golpe de estado. Vestem o uniforme de uma pretensa superioridade moral, marca dos seletos “guardiões da pátria” e da “família tradicional”.

Na calçada, de onde eu fotografo, anoto a seguinte observação, feita por um vendedor ambulante de camisas similares à oficial, em comentário ao protesto. “Vai melhorar alguma coisa o Brasil, essa merda? Isso é muita sem-vergonhice… É por isso que o Brasil não vai pra frente”. O burburinho das ruas é entrecortado por anúncios de ‘Tem coco e água gelada, só 2 reais!’ e bordões futebolísticos como ‘Sai que é sua, Taffarel’, de quem aguarda o jogo de logo mais. Quem veste o verde o amarelo, definitivamente, conversa, exibe, incorpora o futebol (20).

Pelo menos nessa janela temporal de Copa do Mundo, um novo tom de verde e amarelo, aos pouco,s tomou conta das fachadas, das montras e do peito dos transeuntes. Os grupos bolsonaristas não ditam mais a mensagem que está sendo lida na camisa canarinho. Saem novamente derrotados. Dessa vez, pelo futebol.

Textos e imagens: Fábio F. Marques, Fortaleza, 01/12/2022

Publicado a 06-12-2022

Referências

Canevacci, M. (1997). A cidade polifônica – Ensaio sobre a antropologia da comunicação urbana. Studio Nobel.

Silva, A. (2001). Imaginários urbanos. Perspectiva.

 

LOCALIZAÇÃO

LOCAL: CE

LATITUDE: -3.7327203

LONGITUDE: -38.5270134