CLEMENTINA

Clémentine* fazia a barba com regularidade, mantendo uma aparência igual a qualquer mulher. Quando descobriu que existia alguém capaz de não o fazer, venceu o preconceito de uma forma soberba: a competição. A aposta de, também ela, provar possuir uma barba fez com que dobrasse o impossível. Dona do seu próprio destino contribuiu, com o seu grão, para o avanço da sociedade ou, simplesmente, para contrariar a ideia do impossível. A conexão histórica entre o corpo e a arte, sobre um fundo temporal que vai das vanguardas artísticas do início do séc. XX até à atualidade, é uma das preocupações do trabalho artístico e educativo desenvolvido pela Arte Total. As diversas formas de expressão que encaram o corpo como lugar de pesquisa e investigação artística assumem, desta forma, uma posição de relevo. Regemo-nos por princípios anti discriminatórios, e isso implica uma consciência aguda do mundo em que vivemos e o questionamento das hegemonias opressoras. É nessa liberdade de pensamento e crítica às violências que cremos poder formar pessoas mais livres, críticas, tolerantes e justas porque, afinal, a arte não é só estética, e a estética também é política. Nos últimos dois séculos, o corpo sexuado tem ganho uma centralidade epistemológica nunca antes alcançada. A cultura visual contemporânea testemunha este processo de afirmação dos sexos e dos seus corpos, cruzando fronteiras e identidades. Nestes cruzamentos, o corpo-imagem está presente e é no percurso histórico das imagens do corpo sexuado das políticas do olhar que se vão tecendo as relações de poder e a criação dos “corpos dóceis” de que nos fala Foucault (1999). É dócil “(…) um corpo que pode ser submetido, que pode ser utilizado, que pode ser transformado e aperfeiçoado” – Foucault (1999, p. 118). Os métodos que permitem o controle das operações do corpo – as disciplinas – e lhes impõem uma relação de docilidade/utilidade, segundo Foucault (1999), são fórmulas gerais de dominação. Foi sobre a dominação e a situação do corpo que “entra numa maquinaria de poder que o esquadrinha, o desarticula e o recompõe” (Foucault, 1999, p.117) que nos interessou, numa primeira abordagem, este tema da mulher barbuda. As primeiras experiências de trabalho e pesquisa, levaram-nos para caminhos que não estavam, à partida, programados porque, no ato criativo, existe uma dose considerável de acaso que rizomaticamente nos conduz ao desconhecido. E, nestas reflexões surgiram novas questões e novas pesquisas para nos “enchermos” e conseguirmos vomitar algum movimento sentido. No grupo de trabalho, iniciamos um diagnóstico baseado na ferramenta POWER FLOWER. Daí surgiram dúvidas e questões sobre o posicionamento de cada elemento face aos mecanismos de poder. Decidimos então ler o livro de Chimamanda Ngozi Adichie “para educar crianças feministas” (2017), porque a questão de identidade de género foi discutida no grupo e porque a questão do feminismo veio por arrasto. Foi importante esta leitura também para a abordagem do tema com as crianças e jovens que, entretanto, estávamos a preparar. Deste “encher” surgiu outra questão que se revelou importante: refletir sobre a relação das imagens (criadas no espetáculo) e o público. Esta busca encontrou resposta na célebre fotografia de Robert Doisneau, Un Regard Oblique. O propósito do fotógrafo era explorar as imagens resultantes das reações dos transeuntes que, na sua rotina quotidiana, passavam junto à montra de uma Galeria de Arte onde se expunham dois quadros, um dos quais um nu feminino de Wagner. De acordo com Doane (1982), o jogo de olhares do casal captado pela câmara oculta de Doisneau, revela-nos como o olhar feminino está fora do triângulo de significação que organiza a imagem:

O homem não está numa posição central; na verdade, ele ocupa um espaço muito estreito no extremo direito da imagem. No entanto, é o seu olhar que define a problemática da fotografia; é o seu olhar que apaga, de forma eficaz, o da mulher. De facto, como sujeito do olhar, a mulher olha atentamente. Mas não é apenas o objeto do seu olhar que é escondido do espectador, o seu olhar é envolto por dois pólos que definem o eixo de visão masculina. […] A representação fetichista do corpo feminino nu, plenamente visível, garante uma masculinização da posição do espectador. […] O olhar da mulher está, literalmente, fora do triângulo que traça uma cumplicidade entre o homem, o nu feminino, e o espectador. (Doane,1982, pp. 84-85)

A pergunta que nos surgiu a partir deste exemplo foi: e hoje? Como nos relacionamos com o corpo? Como lemos Foucault? Que mecanismos de poder ainda resistem e que mecanismos de poder entraram no nosso DNA social? Como resistir? Onde nos dói? Como podemos agir sobre os nossos traumas? E o público? Como se vai situar neste trabalho? Será que hoje o olhar feminino ainda se situa fora do triângulo de significação que organiza a imagem de Doisneau? Independentemente de uma autodenominação ou não, o trabalho CLEMENTINA acabou por carregar uma poética feminista, alinhando-se com uma postura ética, estética e política de resistência e criação de outras possíveis figurações para o feminino, para o corpo e para a subjetividade. O desenvolvimento do projeto partiu de um conjunto de cinco laboratórios de criação com a duração de um mês cada, vocacionado para crianças e jovens, paralelamente ao trabalho de criação da companhia. Foram apresentados dois espetáculos. Um primeiro pela companhia de dança Arte Total e outro com o resultado do trabalho dos laboratórios, onde incluímos as crianças e jovens participantes, gerando desta forma um sentimento de presença e uma interiorização do conceito lançado no ponto de partida do trabalho. Assim, uma escolha participativa foi, também ela, mais participada. A participação de público menor de idade transportou consigo um vasto conjunto eclético de público, que foi uma mais valia nos objetivos gerais do projeto. Ou seja: um imaginário feminista que se materializou numa criação contemporânea em que os participantes ativos e passivos, mesmo sem o saberem, foram herdeiros de uma linhagem crítica feminista que tentou ultrapassar barreiras identitárias e se tornou presente enquanto projeto artístico. Sobre a participação das crianças, a pergunta intrínseca ao trabalho foi a de entender como seria possível, via imagens, a tomada de consciência corporal e de criação de movimentos capazes de contextualizar vozes na maioria das vezes ausentes nas vivências em dança no contexto escolar. Partir desta problematização configurou-se-nos numa busca por saberes significativos que nos pareceram constituir os diferentes espaços de formação identitária.

Texto: Cristina Mendanha

Imagem: Arte Total

Publicado a 14-12-2022

Referências

Adichie, C. N. (2017). Para educar crianças feministas: um manifesto. Companhia das Letras.

Doane, M. A. (1982). Theorizing the Female Spectator. Screen23(3-4).

Foucault, M. (1999). Vigiar e punir: nascimento da prisão. Editora Vozes.

 

*A partir da coreografia CLEMENTINA, Cristina Mendanha apresentou a comunicação (cujo micro-ensaio publicamos agora) e vídeo com o mesmo título, para a segunda edição do Seminário de Cultura Visual, a 27 de outubro de 2022, na Universidade do Minho, numa organização CECS/Passeio.

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