Cinema Batalha, no Porto: um olhar a partir de Foucault
O Cinema Batalha, no Porto, foi reinaugurado em dezembro de 2022, posicionando-se como um marco para o público cinéfilo na cidade. Grande parte da cobertura mediática à volta do ressurgimento do Batalha Centro de Cinema (como foi agora renomeado) alimentou-se da recuperação dos frescos (alusivos à festa do S. João) de Júlio Pomar, que se julgavam permanentemente desaparecidos, depois da censura salazarista (que os mandou tapar, em 1948) e de uma alegada intervenção, já no século XXI, que os teria destruído. O que se propõe neste microensaio é, a partir dos princípios foucauldianos (inversão, descontinuidade, especificidade e exterioridade) discutir a forma como estas pinturas foram banidas pelo discurso institucional (o Estado Novo) e recuperadas pela mesma fonte de poder discursivo, isto é, pela força legitimadora do discurso municipal, que representa, a nível local, o Estado.
Fixemo-nos, por instantes, nas palavras de Michel Foucault, em A ordem do discurso: “Questionar a nossa vontade de verdade; restituir ao discurso o seu caráter de acontecimento; suspender, enfim, a soberania do significante” (1971-1999, p. 51). Dediquemo-nos, pois, a contrariar os nossos próprios pressupostos fundacionais, imbuídos na cultura do tempo que vivemos. Não para os desvalorizarmos ou negarmos o que de fundamental e defensável neles existe, mas para, num exercício de abstração concetual, criarmos distância relativamente ao quotidiano, a que nos referimos, vulgarmente, como “a espuma dos dias”. Ao questionar a nossa vontade de verdade, percebemos como é seguro e expectável alinharmos no merecido aplauso à emocionante descoberta dos frescos de Júlio Pomar, bem como à sua louvável recuperação. Se ousarmos, como Foucault, restituir ao discurso o seu caráter de acontecimento, talvez percebamos as contingências (ou os constrangimentos) que o fizeram surgir, numa forma específica, excluindo outras possibilidades de existência, que ficam na penumbra do tempo. Suspendendo a soberania do significante, não valorizamos tanto o conteúdo veiculado, como as circunstâncias que o tornaram possível. Querendo isto significar, em termos simples, que há uma quase irónica coincidência na origem discursiva que anulou Júlio Pomar e na que lhe deu vida, sendo que só o percebemos ajudados pela metodologia proposta por Foucault.
Inversão
O que Michel Foucault nos propõe com o princípio da inversão é o reconhecimento do “jogo negativo de um recorte e de uma rarefação do discurso” (1971-1999, p. 52). De tão óbvio, o que se diz acerca da descoberta e recuperação das pinturas de Júlio Pomar assenta quase organicamente na nossa tendência natural para a continuidade e procura da verdade, num discurso. Em 2022, palavras como resistência e “liberdade” (Vieira, 2022) são utilizadas para classificar a incrível descoberta. Mas, já em 2017, a Câmara, em reunião da Assembleia Municipal, fazia pompa de um convite endereçado ao artista plástico, para refazer os murais, que ocupam uma parte do foyer principal do edifício e uma outra parede junto ao balcão do cinema (2017). O que fica por dizer na comunicação institucional de 2017? O Partido Comunista Português, em reunião da Assembleia Municipal, pergunta por que razão é que a câmara optou pelo aluguer e não compra do edifício. Cinco anos passados sobre a proposta de reconstituição feita a Júlio Pomar e 10 mil euros mensais depois pagos aos proprietários (num contrato de 25 anos e 3 milhões de euros), o incalculável valor simbólico da descoberta fixa um sentido de justiça e de reposição da memória que torna qualquer custo insignificante. Sobretudo pela correção democrática de um erro político passado.
Descontinuidade
Pelo dito anteriormente, não se pode, contudo, cair na tentação de acreditar que o discurso da rarefação esconde um não dito reprimido conscientemente. Foucault defende a descontinuidade como inerente ao discurso, incluindo e excluindo (ou até ignorando) elementos, que não são mais do que possíveis combinações probabilísticas. Por exemplo, um dos arquitetos responsáveis pela reconversão do Batalha (Alexandre Alves Costa) coloca a “intensidade emocional” (Andrade, 2022) da descoberta à cabeça de todo o trabalho realizado no espaço. A descontinuidade no discurso materializa-se na hierarquização que impomos às coisas. No caso, do arquiteto com competências técnicas para recuperar um edifício, a emoção sobrepôs-se ao traço, o que prova que as descontinuidades discursivas se alimentam e são absorvidas pela teia de relações sociais, culturais, pessoais. Uma casa não se sustém apenas pelos alicerces, ainda que seja concetualmente estimulante despi-la dos seus acessórios temporais, para observar o oco que a constitui. Assim é o discurso.
Especificidade
Avisa Foucault, que não há nenhuma leitura a decifrar nos discursos que consumimos. Apenas, e só, “uma violência que fazemos às coisas” (1971-1999, p. 53), pois que selecionamos, entre tantas possibilidades, uma para proferir no nosso discurso, integrando-a na prática quotidiana e institucionalizada como a correta. Neste sentido, a “oportunidade única para resgatar a memória perdida do Cinema Batalha” (Cruz, 2017) foi uma de muitas hipóteses em aberto, como o foi a opção de tapar as pinturas, consideradas subversivas. E, aqui, é muito difícil não extrapolar para a ilação de que o discurso produz efeitos. É ação. A violência que o incorpora e que dele resulta nunca será inocente. Daí ser necessário, através destes princípios, procurar a genealogia que o forma, melhor dizendo, mapeá-lo.
Exterioridade
Daqui nos encaminhamos para o último dos princípios, que diz respeito à exterioridade no discurso, contrariando uma outra verdade que procuramos incessantemente, que é a interioridade dos discursos que produzimos. Quando se refere à exterioridade, Foucault alude “àquilo que dá lugar à série aleatória desses acontecimentos e fixa as suas fronteiras” (1971-1999, p. 53). Os limites do que pode ou não ser dito. Os constrangimentos (mais óbvios ou mais discretos, censórios ou apenas aleatórios) são subjacentes a qualquer tipo de discurso, incluindo uma obra de arte, cuja configuração final é sempre o resultado de um número infindável de exclusões.
Uma (entre muitas) conclusões
No dia em que escrevo, 11 de janeiro de 2023, num Portugal ainda democrático e vivendo no século XXI, as condições de possibilidade do discurso sobre os frescos de Pomar são as que foram e continuam a ser marcadaspelo discurso institucional, isto é, a Câmara do Porto, essencialmente através do seu presidente, Rui Moreira. Não obstante, há sete décadas, os sistemas de exclusão próprios de um regime ditatorial, numa sociedade fechada e empobrecida, ditavam outras formas de verdade e de justiça, que eram maioritariamente aceites e balizados institucionalmente, quanto mais não fosse, pelo que não era permitido dizer ou fazer.
O interessante na perspetiva foucauldiana, é que, mesmo complexificando ou acrescentando outras inabaláveis vertentes aos princípios enunciados, as matrizes básicas que lhe dão fundamento dificilmente são permeáveis à sua refutação, nem esvaziam, por si só, o nosso legítimo desejo de continuidade e verdade. Apenas nos fazem compreender com mais clareza o tempo e a memória, limpando-os da granularidade que os caracteriza.
Texto e imagens: Teresa Lima
Publicado a 20-01-2023
Referências
Andrade, S. C. (02-12-2022). “No Cinema Batalha, as pessoas todas choraram quando apareceu o fresco do Júlio Pomar”. Público. https://www.publico.pt/2022/12/02/culturaipsilon/entrevista/cinema-batalha-pessoas-choraram-apareceu-fresco-julio-pomar-2030022
Cruz, V. (07-02-2017). Júlio Pomar recupera frescos do Cinema Batalha. Expresso. https://expresso.pt/cultura/2017-02-07-Julio-Pomar-recupera-frescos-do-Cinema-Batalha
Foucault, M. (1971-1999). A ordem do discurso. (Trad. Laura Sampaio). Edições Loyola
Júlio Pomar vai refazer os frescos do Cinema Batalha destruídos pela PIDE. (06-02-2017). Porto. https://www.porto.pt/pt/noticia/julio-pomar-vai-refazer-frescos-do-batalha-destruidos-pela-pide
Vieira, A. B. (03-06-2022). Frescos de Júlio Pomar no Batalha resistiram à tinta da censura da PIDE e foram agora postos em liberdade. Público. https://www.publico.pt/2022/06/03/local/noticia/frescos-julio-pomar-batalha-resistiram-tinta-censura-pide-postos-liberdade-2008739
LOCALIZAÇÃO
LOCAL: Porto
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