Cidade hiperbólica
“But the ghosts were all there, walking on the waves of harmony.”
(Cable, 1889/2015)
Escrevo estas palavras sentada no jardim de Jackson Square, New Orleans, para que as impressões não se dissolvam no oceano que nos separa. A algazarra da cidade faz-se de música, vozes, cheiros e cores, neste primeiro fim-de-semana do Krewe of Boo, o Halloween crioulo. Do lado do Mississippi chega um vento incerto, que enovela os cabelos e faz ondular a bandeira dos EUA.
Tenho comigo Strange true stories of Louisiana. Não a primeira edição, que chamou por mim na Arcadian Books and Prints, mas uma versão mais acessível, de 2015. Entrei na livraria quase como quem toma um calmante. Era necessário descascar as diversas camadas temporais de que se compõe New Orleans. Procurava palavras passadas, que clarificassem o presente. Como Benedict Anderson em Imagined Communities (2016). O conto como um meio técnico capaz de providenciar a representação do imaginário de uma comunidade-nação. Acontece que descubro em Madame Lalaurie, do conto The haunted house, uma metáfora da cidade (Cable, 1889-2015). Esclareço: dos quarteirões históricos, que tentei decifrar. Porque elegante, mas fatal. Coincidentemente ou não, a casa assombrada da novela que nomeio situa-se na Calle Real/Royal St, que foi a que calcorreei mais vezes, entrando e saindo das imprevisíveis galerias de arte que a habitam.
Talvez não seja mau começar pelo início. Disseram-me que New Orleans (a quem tratam por Nola) é como que um país à parte. Tinham-me referido o mesmo quando estive na Baía. Salvador não é o Brasil, nem New Orleans é exatamente os EUA. Evito os clichés, mas as semelhanças estão à vista: geografias de escravidão, permanentemente olhadas como “folclóricas”. E, de facto, registo a mesma ancestralidade muda e orgulhosa nestas peles negras, que continuam a fazer os serviços menores, no século XXI. Canta Caetano Veloso: “E outros quase brancos tratados como pretos/ Só pra mostrar aos outros quase pretos/ Que são quase todos pretos” (2012).
Appudarai (Medeiros & Cavalcanti, 2010) enuncia a luta pela habitação, mas também os fluxos que sedimentam a desigualdade, como caracterizadores da modernidade. Nesta cidade, a disputa pelo espaço é vivida a cada esquina. Não só do interior privado (os bares e hotéis sofisticados que fabricam uma aculturação apenas aparente), como no espaço público em si mesmo. Só na superfície podemos confundir as manifestações de rua (música ao vivo a cada passo) com democraticidade. Até aqui há uma hierarquia vertical. Entre os que apenas se valem de um par de baquetas e baldes plásticos invertidos para fazer percussão. E os que desfilam instrumentos, uma estrutura básica. Todos querem ganhar dinheiro. Aceitam cash, Paypal, encaminham donativos para QR Codes. Os turistas, aos montes, fotografam e fazem vídeos. É inevitável.
Era este o ponto preciso a que queria chegar e não estou certa de me expressar bem. Os “branquelas” incorporam esta efusão como sua, pelo menos na meia dúzia de dias em que por aqui vagueiam. A cultura misturada que desaguou em New Orleans é, atualmente, uma commodity. A dado ponto, contudo, não sei bem quem é o explorado e quem explora. Porque a mútua troca cultural é ilusória. Sendo que os donos da cidade (os que estão inscritos nestes cheiros antagónicos da downtown e na monumentalidade, por vezes, decadente da arquitetura colonial) são os miúdos que circulam pelas ruas. Os miúdos negros, quero dizer. Que, a propósito, estão no nível mais baixo desta cadeia performática, baquetas nas mãos, batendo furiosamente em baldes plásticos, vigiados pelos pais ou parentes mais velhos. Podemos optar por uma visão romântica – vem-me à memória Capitães da Areia (Amado, 1937-2001) -, ou estabelecer um referencial com os direitos das crianças, que julgamos mais do que conquistados, no nosso mundo civilizado.
Em todo o caso: isto para dizer que New Orleans é uma metamorfose permanente, repetindo ciclos e transmutando-se a cada passagem. A partir do meio da tarde, a animação é garantida no French Quarter. O barulho é exponencial noite dentro e pára, consideravelmente, por volta das 4 da madrugada. Manhã cedo, os despojos da noite são literalmente levados e lavados. Aproveito esta luz limpa para respirar as ruas. A esta hora, como numa aldeia, quem passa cumprimenta, deseja um bom dia. É com alívio que me encaminho para fora dos limites de Bourbon St. Num normal dia da semana, no bairro Tremé, o quotidiano ameniza o excesso do French Quarter. Há miúdos aos encontrões e risadas, a caminho da escola. Muitos encontram-se na Treme Coffee House para tomar o pequeno-almoço. Há um piano a um canto deste vulgar café.
Agora sou interrompida pelo apito de um navio e recordo o Mississippi como outro bálsamo na paisagem. Como se as suas águas nos devolvessem certezas familiares. O cheiro do rio, os barcos que o navegam. Reminiscências de Guimarães Rosa: “amo os grandes rios, pois são profundos como a alma do homem. Na superfície são muito vivazes e claros, mas nas profundezas são tranquilos e escuros como os sofrimentos dos homens. Amo ainda mais uma coisa de nossos grandes rios: sua eternidade” (1965). Remeto-me para o rio da minha cidade, que não é tão largo, mas que também corre com a mesma indiferença. Uma garantia de que a vida permanece para além de nós. Visito o Mississippi pela manhã, revisito à tarde. Experimento a luz, nas diferentes fases do dia. Entre ele e a cidade a linha do comboio. E nisto, passa um gigantesco comboio de mercadorias, ruidoso e lento. Ele toma toda a paisagem por largos minutos.
Retomando a orquestração de New Orleans. Penso nestas reproduções musicais como uma hiper-realidade do que foi a cidade. Vocês sabem. Jazz, Soul, Louis Armstrong, Tennessee Williams, Faulkner e por aí fora. Alguma coisa de novo estará a surgir? Isto é, o que aqui se faz é um remake do acontecido ou renovação permanente da cultura popular (e erudita, já agora)? O tempo que me resta na cidade não permitirá tirar qualquer conclusão.
Sim. Os mendigos. Está aqui um ao meu lado no jardim. São muitos e maioritariamente negros. Deambulam com liberdade? Ou com loucura? Não sei. Há alguma coisa de poético nestes mendigos, como se não se rendessem. Mas será talvez a visão romântica que persiste em aparecer.
Ia referir o Mardi Gras e as parades. As colunas de bandas de música e performers, anunciadas por um carro da polícia, que parecem surgir do nada e desvanecem-se em segundos. Pastiche? Por duas vezes me jogaram contas (beads) como provocação. A mim e a dezenas de outras pessoas. Numa delas, atiraram propositadamente para a varanda onde me encontrava, com um aceno de sedução.
Há um tempo voodoo a que não fui. E os cemitérios. Também a morte como folia. Que descaramento! Entro na Igreja de Guadalupe e sou atraída pelo embalo maternal de uma criança. Detenho-me neste sinal de vida, pensando na criança que eu queria abraçar, neste preciso momento. Desvio o olhar e dou-me conta do caixão, uma imagem quase pornográfica. Há muito tempo que não via um velório na igreja (nos dias que correm, são discretamente arrumados nas capelas mortuárias). Saio, por respeito.
Texto, imagens e vídeos: Teresa Lima
New Orleans, EUA, 22 de outubro 2022
Referências
Amado, J. (1937-2001). Capitães da areia (Vol. 22). Dom Quixote.
Anderson, B. R. O. G. a. (2016). Imagined communities: reflections on the origin and spread of nationalism / Benedict Anderson (Revised edition ed.). Verso.
Cable, G. W. (1888-2015). Strange true stories of Louisiana. River Road Press.
Lorenz, G. (1965). João Guimarães Rosa – Entrevistado por Günter Lorenz ‘Diálogo com Guimarães Rosa’. Retrieved 24-10-2022 from http://www.elfikurten.com.br/2011/01/dialogo-com-guimaraes-rosa-entrevista.html
Medeiros, B. F., & Cavalcanti, M. (2010). Entrevista com Arjun Appadurai. Revista Estudos Históricos, 23(Modernidade e modernização), 1-12. https://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/reh/article/view/2915
Veloso, C. (2012). Caetano Veloso – HaitiYoutube. https://www.youtube.com/watch?v=MfAxBoxdlb0
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