Cheiros e sabores entre os passos nas cidades

Há uma década deixei na Catalunha um pedacinho de mim e, por certo, trouxe na alma muitos estímulos de sua cultura. Voltar a passear por suas ramblas é sempre um jogo mnemônico, que acende os sentidos. As imagens carregadas com as cores peculiares do mediterrâneo vibram aos olhos, mas há outros estímulos que se manifestam quando perambulamos, que nem sempre percebemos. No caso, refiro-me ao olfato, e ao dar atenção a esse sentido também tratamos o paladar, pois ambos estão conectados fisiologicamente.

Há mais de uma década, essa mágica combinação me foi despertada na condição de investigadora, quando vivia em Tarragona e estava a desenvolver um exercício de Antropologia Urbana. Foi o dispositivo para estar mais atenta aos cheiros das cidades e para tentar percebê-los sob a ótica da alimentação. Comparado com os apelos visuais que vivemos na contemporaneidade mediatizada, quando se assiste às imagens devorando os indivíduos em um processo de iconofagia (Baitelo, 2014), o olfato parece ser um bem menor. No entanto, tratamos de um complexo sentido, imprevisível, o mais primitivo evolutivamente, e que está atrelado às singulares histórias de vida de cada indivíduo (Lauretti, 2017). Os cheiros estão para além das (des)agradáveis borrifadas de perfumes, sendo o olfato um sentido demasiado complexo diante das suas inerentes e inúmeras conexões. O modo como se vincula ao córtex insular, a principal região do córtex cerebral relacionada aos sentimentos, também contribui para despertar as emoções (Damásio, 2010). Situadas na periferia do corpo, as narinas interagem com o cérebro e apresentam-se como um recetor do ambiente por onde circulamos. Com isso, pode-se inferir que elas comungam e até comandamos nossos passos pelas cidades.

Desbravar os cheiros em uma cidade é um exercício estimulante e essa dinâmica é ampliada quando agregamos a eles os seus potenciais sabores. Com isso, tocamos nas armadilhas da memória (Ferreira, 2003), ou seja, acionamos nossos registos mnemônicos, fragmentados, que jogam entre as lembranças e o esquecimento. Também provocamos nesse âmbito a captura de imagens! Vamos pensar, por exemplo, na ingestão de um crepe pelas ruas de Paris, agregando-a a um cenário com odor de lodo, como era exalado na capital francesa no século XVII. Segundo Elias (1989), era detestável e não se podia suportar. De modo mais realista, vale relacionar um restaurante que mantenha à sua porta um bueiro com cheiro de esgoto. Parece não soar bem!

Burke (2004) discorre seu parecer em relação aos odores pútridos diante do paradigma da higienização contemporânea, vinculada a um avanço civilizacional e a um exercício de tolerância e empobrecimento olfativo. O historiador esgueira-se de vincular a alimentação à discussão, no entanto, as equipas de marketing das grandes cadeias multinacionais demonstram estar atentas a essa sintonia. Os cheiros das gordurosas batatas fritas da McDonalds ou do orégão das lojas de franquia da Subway são alguns exemplos dessa relação do olfato e de sua convocação ao paladar que vem sendo explorada em diferentes espaços das cidades. Essas peculiares estratégias alertam, atiçam e convocam os consumidores a mover as suas carteiras. Por sua vez, indicam uma uniformização de padrões olfativos a nível global, assim como a assepsia vinculada aos cheiros que se conferem nas cidades. Ao voltar à Tarragona, por exemplo, percebi duas heresias relacionadas à instalação do mercado municipal, recém restaurado: uma loja do supermercado Mercadona a ocupar o piso zero do edifício; e a ausência de cheiros no ambiente superior, diante de um espaço reluzente em que se atestam padrões de higienização. Essa máxima corrompe a iconicidade dos mercados municipais, os quais reservam ambientes que acolhem os alimentos da cultura local, carregados de histórias e representações simbólicas. No entanto, para evitar afugentar os turistas, eles são adequados pelas medidas sanitárias, sendo higienizados com o propósito de evitar possíveis odores e pragas (Roim, 2016). Com isso, os próprios cheiros relacionados a esses ambientes são inibidos.

Esse frustrante cenário foi compensado pela visita a uma casa de chá, um dos objetos a que outrora me dediquei a explorar na investida antropológica por Tarragona. Localizada na parte alta da cidade, próxima à célebre Catedral, foi como um bálsamo conferir que a loja ainda lá estava, ainda que a sua proprietária, a argentina Montse, tenha comunicado que, depois de duas décadas, o espaço estaria prestes a ser encerrado. No entanto, ainda tive a oportunidade de, mais uma vez, mergulhar nos aromas que se mesclam naquele ambiente, que reserva uma complexa combinação de fragrâncias oriundas da aglutinação dos cheiros que expelem de cada lata que se abre. E como diz Montse, “em cada uma há um verdadeiro mundo”. Realmente, trata-se de um universo que desconcerta o cérebro a partir das narinas. Quando ebulidos, escorregam e explodem as papilas gustativas, trazendo lembranças com repertórios que incluem Tarragona, assim como a evocação de variados elementos, que compunham nos inebriantes sabores a cada gole.

Uma das latas abertas exalava um aroma distinto. Tratava-se de uma combinação peculiar, que remetia ao licor Chartreuse, a bebida que rega as diferentes propostas gustativas promovidas nos dias de celebração da festa de Santa Tecla, que acontecia naquela semana na cidade. Depois de dois longos anos de pandemia, o perambular pela cidade indicava que os festejos tomavam as ruas. Os desfiles ritmados pelo rufar dos tambores anunciavam a chegada dos diferentes personagens ao evento, os quais soltavam imensos fogos, que iluminavam caminhos, entre a fumaça e o cheiro da pólvora que os encobria. Outros cheiros característicos das festas populares também eram sentidos, como o odor dos urinóis, expostos em vários cantos da cidade, assim como os aromas dos churros, uma característica iguaria da cultura ibérica que marca presença nos momentos de celebrações.

A perda do olfato ganhou visibilidade no período da pandemia vinculada à COVID-19, ao ser incluída no repertório vinculado aos sintomas da doença. No entanto, pouco se falou do paladar, quiçá da relação entre ambos. Mas é pertinente clamar sobre esse tema à luz da cultura, pois há muito a ser explorado sobre as potencialidades da fisiologia do gosto (Savarin, 1995). Já se conferem curadorias em museus que avançam sobre vivências para tratar desse tema. Também já se veem expressões artísticas a estimularem o público a perceber o sentido do olfato nos circuitos das cidades (Khoury, 2022). Mas esse movimento ainda é tímido, e avançar sobre essa dinâmica pode ser um contributo para sensibilizar os corpos a (re)capturarem os sentidos dos aromas e suas conexões com as papilas, ousando e percebendo as suas imensas possibilidades quando passeiam pelas cidades.

Textos e fotos: Cynthia Luderer

Publicado a 17/10/2022

Referências:

Baitello Júnior, N. (2014). A era da iconofagia: reflexões sobre imagem, comunicação, mídia e cultura. Paulus

Brillat-Savarin, J. (1995). A Fisiologia do Gosto. Companhia das Letras.

Burke, P. (2004, 15 de fevereiro). Uma história cultural dos odores. +MAIS!. https://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs1502200405.htm

Damásio, A. (2010). A construção do cérebro consciente. Temas e Debates.

Elias, N. (1989). El processo de la civilización: investigaciones sociogenéticas y psicogenéticas. Fondo de Cultura Económica.

Ferreira, J.P. (2003). Armadilhas da memória. Ateliê.

Khoury, K. (2022, 5 de setembro). Smell maps create new ways of exploring cities. Spring Wise. https://www.springwise.com/innovation/arts-entertainment/mapping-smells-in-the-urban-environment/

Lauretti, P. (2017, 25 de abril). O sentido do olfato varia conforme a história de vida da pessoa. Jornal da Unicamp. https://www.unicamp.br/unicamp/index.php/ju/noticias/2017/04/25/o-sentido-do-olfato-varia-conforme-historia-de-vida-da-pessoa

Roim, T. P. B. (2016). As relações socioculturais no Mercado Municipal de São Paulo: produção de tradições na formação e no reconhecimento de grupos culturais a partir da alimentação Unesp. http://hdl.handle.net/11449/137923

 

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