Visões da folia 2 – Carnaval de rua carioca como levante

Em 2022, a festa dionisíaca mais tradicional da cultura brasileira foi proibida nos espaços públicos da cidade do Rio de Janeiro, sendo somente permitida em estabelecimentos privados pagos, tendo como justificação o controlo da Covid-19, ainda que com setenta por cento da população vacinada. Continuando o Brasil a viver sob práticas de censura (executadas pelos poderes conservadores do país) e repressão às expressões a(r)tivistas – que buscaram de algum modo denunciar especialmente as necropolíticas (Mbembe, 2018) e abjeções ao outro (Butler, 2018) – as insurgências seguem brotando na vida quotidiana urbana, fazendo nascer potência onde se experiencia poder.

Traçando percursos inesperados pela cidade, as formas festivas e eróticas (Maffesoli, 2014) do Carnaval de blocos de rua construíram brechas frente à interdição do Estado. Desse modo, o movimento do Carnaval de rua carioca, de certa maneira retoma um lugar de protagonismo social, seguindo na contramão de um processo regulatório rigoroso, sublinhando não só o debate sobre direito à cidade, mas também – a partir das  experiências estética e estésica, reveladas nos gestos de existências performados ao longo dos cortejos, por meio da música, canto e dança – o desejo de seguir sendo e tendo a capacidade de imaginar, recomeçar e partilhar emoções e afetos no quotidiano da cidade.

Os corpos insubordinados – experimentando sensivelmente a cidade com os outros, realizando incursões que se iniciam pela manhã e seguem ao longo do dia, noite e madrugada, para retornar o ciclo festivo e deslocando-se em forma de cortejo, caminhando por becos, ruas, vielas e ocupando praças – revelam a potência transgressora da festa carnavalesca em que a rua é vivida, sentida e simbolicamente transmutada como espaço de liberdade, partilhas de afetos e amor pela vida. A rua se faz carne!

Corpografando (Jacques, 2012) a festa transgressiva carnavalesca pelos espaços da Zona Portuária do Rio de Janeiro, convido os passeantes a sentirem os sentidos desse acontecimento através do meu corpo lançado nessa experiência sensível festiva, na partilha sensível e dissensual (Rancière, 2009) dessa comunidade, que performa um pequeno “levante pela vida” (Didi-Huberman, 2017), pelo direito a existir de diversos modos, apesar de tudo!

Texto e imagens: Cíntia Sanmartin Fernandes, Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ

Publicado a 05-04-2022

Referências

Butler, J. (2018). Corpos em aliança e a política das ruas. Civilização Brasileira.

Didi-Huberman, G. (2011). Sobrevivência dos vagalumes. Ed. UFMG.

Didi-Huberman, G. (2017) (Org.). Levantes. Ed. SESC-SP.

Duvinaugd, J. (1983). Festas e civilizações. Tempo Brasileiro.

Fernandes, C. et al (2018). Corpo, cidade e festa. Interin., 24(1), 157-175. 2018.  https://doi.org/10.35168/1980-5276.UTP.interin.2019.Vol24.N1.pp157-175

Maffesoli, M. (2014). Homo eroticus: comunhões emocionais. Forense-Universitária,

Mbembe, A. (2018). Necropolítica. N-1 edições.

Jacques, P. B. (2012). Elogio aos errantes. EDUFBA.

Rancière, J. (2009). A partilha do sensível. Ed. 34.

Sennet, R. (1997). Carne e Pedra. Record.

 

 

LOCALIZAÇÃO

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