Barcelona pró-Palestina: uma cidade-movimento?

Na rua, no caminho para um destino qualquer, ora mais ora menos tido em conta por quem nela caminha, de repente, surge uma oração. A cidade é observada ao jeito “de um flâneur, explorando os seus recantos, seguindo por caminhos inesperados, prestando atenção ao que não se oferece à vista desarmada” (Barbosa & Lopes, 2019, p. 11). Enquanto cidade envolta em estímulos de várias causas, Barcelona vem materializando várias manifestações de apoio ao Estado da Palestina. O conflito israelo-palestiniano dura desde há várias décadas, tem-se intensificado infraestrutural e humanisticamente e a sua cobertura mediática e abordagens nas redes sociais no último ano também (Abu-Ayyash, 2024). Com isto, pode conceber-se Barcelona enquanto cidade-movimento? A escolha vem na sequência de uma estadia de investigação do autor deste artigo realizada naquela cidade este ano e motiva o ensaio de uma resposta àquela questão.

Sendo a visualidade composta por pontos de visibilidade – e também de invisibilidade (Pereira et al., 2020) –, o que se vê remete para compostos de sentidos que faz identificar outros, através de atos comunicativos (textos) que emergem na interação de alguém com alguma coisa. Por exemplo, quem caminha e interage com uma frase numa parede. A pessoa caminhante identifica e identifica-se com ela em determinado grau, levando a pensar em determinado grau – mesmo que de ignorância – sobre aquela frase naquela parede e o que representa. Isto sob uma mediação que se transforma na interação – transmediação (Elleström, 2019). Em meios físicos ou digitais. Os movimentos sociais vão sendo assim transformados, através dos textos que envolvem recursos (semióticos) vários, como a cor, as palavras ou a sua saliência, expressando identidades, detetáveis na interação das pessoas com tais textos (van Leeuwen, 2021).

Barcelona é uma cidade multicultural e diversa e as cidades fazem-se do muito que todas as pessoas individual e coletivamente nelas deixam. La Rocca (2022) aponta para a invenção e reinvenção da vida quotidiana da cidade. Tal dá-se “através das práticas e dos usos dos seus múltiplos lugares e espaços” (p. 20). Em relação aos movimentos sociais, com uma perspetiva sociocognitiva da produção de discurso, van Dijk (2024) reconhece a complexidade além do ativismo visível, apontando para aquilo que é o que está por detrás dos movimentos, isto é, as ações de mobilização para envolvimento de pessoas, o que implica inerentemente o seu envolvimento discursivo. Destas considerações, parta-se para as ruas daquela cidade catalã.

Figura 1: Grafito na parede de um prédio de uma praça. Foto capturada a 3 de março de 2024. Créditos: Pedro Eduardo Ribeiro.

Um primeiro exemplo numa parede é o grafito “FREE PALESTINE”; em português, “PALESTINA LIVRE” (figura 1). Recorrendo aos contributos da Multimodalidade, da Semiótica Social e dos Estudos Críticos do Discurso e relacionados (e.g., Carvalho, 2008; Cunha & Cintra, 1997; Machin & Mayr, 2023; Ribeiro & Cabecinhas, 2023; van Dijk, 2017; 2024; van Leeuwen, 2021), é possível olhar interpretativa e criticamente para este texto, notando nos recursos semióticos que mobiliza e que funcionam enquanto modos (multimodalidade), fazendo emergir os textos. Os visuais: participantes, ligações acionais e indexais (o que se sugere revelar, pensar e sentir, dizer e expressar e que ações se conduzem), cor, forma(s), saliência, delimitação, cenário e objetos. Os verbais: objetos enquanto assuntos, gramática e léxico, atores que convoca e estratégias discursivas. Os contextuais: intertextual, sociocultural, político, histórico e mediático.

A cor verde escura aponta para o reconhecimento da Palestina enquanto Estado e remete para um sentido de “esperança” e de “renovação” (Heller, 2014/2000, p. 183). Salienta-se e delimita-se a mensagem de uma “PALESTINA LIVRE”, elipsada, que é simultaneamente metonímia e metáfora. Recorrendo ao modo imperativo, à adjetivação e à figura de estilo imagem, convoca-se o desejo de reconhecimento do Estado da Palestina independente de Israel e com integridade territorial, acompanhando os desenvolvimentos dos últimos meses naquela zona e a sua mediatização globalizada (e.g., Abu-Ayyash, 2024), assim como os protestos dos últimos meses, que se vão intensificando juntamente com as suas abordagens nos média e nas redes sociais. A frase é recorrentemente utilizada em mobilizações em várias cidades no mundo inteiro e em publicações de redes sociais digitais como o Instagram.

Figura 2: Grafito numa estrutura de um espaço em obras. Foto capturada no dia 21 de janeiro de 2024. Créditos: Pedro Eduardo Ribeiro.

Num outro caso (figura 2), rodeada de uma estrutura metálica refletora prateada e de obras em andamento, destaca-se o mesmo enunciado, acompanhado do desenho de um coração, visível pela sua forma. Este coração remete para a adesão à causa e à sua intensidade, bem como ao seu lado mais emocional e sentimental, de apego, de afeto. Esta intertextualidade (relação entre os dois textos e outros) reforça, assim, a abrangência do fenómeno que é o conflito israelo-palestiniano, a polarização dos dois lados do conflito e dos apoios aos dois lados (e.g., van Dijk, 2017). Refere-se inclusive à representação de um país que está ‘preso’ (Palestina) a outro (Israel), devendo o primeiro libertar-se do segundo. Algo que o cartaz a analisar de seguida sugere.

Figura 3: Cartazes numa vitrine de uma loja desocupada. Foto capturada a 3 de março de 2024. Créditos: Pedro Eduardo Ribeiro.

No meio de vários cartazes, a figura 3 mostra alguns cartazes rasgados, sobressaindo-se um, com o destaque da bandeira do Estado da Palestina, na vertical, em que o triângulo está revertido com o vértice apontando para a parte inferior. Visualmente, isto confere uma posição de poder aos atores envolvidos (Kress & van Leeuwen, 2021), neste caso, todas as pessoas palestinianas e residentes na Palestina. A bandeira ocupa todo o cartaz e reforça a presença simbólica daquele país. Traduzindo-se para o português: “SOLIDARIEDADE COM A PALESTINA/ PAREM COM O GENOCÍCIO/ ACABEM COM A OCUPAÇÃO”. A metonímia da primeira oração indexa-se à causa em defesa daquele Estado. Seguem-se duas orações no modo imperativo, afirmando “O GENOCÍDIO” e “A OCUPAÇÃO”, os quais devem ser ‘parado’ e ‘acabada’.

Figura 4: Estrutura de um prédio com vários cartazes. Foto capturada no dia 21 de janeiro de 2024. Créditos: Pedro Eduardo Ribeiro.

Este caso (figura 4) assemelha-se ao anterior, na medida em que nele se misturam vários outros cartazes e representações com outras referências além do conflito Israel-Palestina. Destacam-se três cartazes na parte superior da estrutura. Da esquerda para a direita, o primeiro expressa a simultaneamente metáfora e personificação “GAZA ASCENDE”, evocando a ação de uma parte da Palestina que resiste e na qual se tem esperança num futuro. Ao lado, duas pessoas abraçadas, crianças, aparentemente descaraterizadas após vitimadas por ataques da parte israelita. De acordo com as Organização das Nações Unidas (ONU), pelo menos, 12 mil e 300 crianças faleceram na sequência de tais ataques entre dezembro e março. Segue-se no lado direito outra representação: de uma Gaza sob destruição, de pessoas que se erguem e protestam pelo que se sugere a defesa do seu país, com uma bandeira da Palestina no topo e algumas palavras que pedem o ‘fim’ quer do “GENOCÍDIO” quer do “APARTHEID”. O artigo de Sultany (2024) discute o empoderamento discursivo de ambos com “prismas adicionais” (p. 26). A autoria refere que existe uma “supremacia judaica”, em que as pessoas palestinianas “são dotadas a um estatuto inferior, fragmentadas e guetizadas (…) e desumanizadas” (p. 3).

 

Figura 5: Faixa levada ao palco no fim da marcha do movimento 8M, junto ao Arc de Triomf, pelo coletivo Ca la Dona. Foto capturada no dia 8 de março de 2024, com ocultação da face das pessoas envolvidas. Créditos: Pedro Eduardo Ribeiro.

No que toca à concretização física humana de tais protestos, sai-se dos grafitos e dos cartazes para a marcha e as vozes nas ruas. A figura 5 assim o ilustra, referindo-se a foto à marcha do movimento 8M, no dia 8 de março de 2024, Dia Internacional da Mulher. As ruas encheram-se de pessoas para reivindicar direitos iguais para todas as mulheres e pessoas e suas interseccionalidades (e.g., Crenshaw, 1989; May, 2015; Ribeiro & Cabecinhas, 2023; Silveirinha, 2005). Quer isto dizer, todas as suas formas identitárias que identificam a pessoa e suas identidades nos mais diversos contextos. Exemplificando, uma pessoa que é mulher e negra expressa uma identidade de género em linha com uma identidade racial. Cada uma daquelas formas remete para um conjunto de experiências que ora proporciona a uma pessoa experiências de privilégio ora de opressão, num espetro instável e que não deve ser generalizável. No final da marcha, os vários coletivos juntaram-se, foram representar-se ao palco e expressar o seu protesto. Um deles foi o coletivo de feminismos catalão Ca la Dona.

Aquele coletivo levou ao palco cinco pessoas, em que leram um manifesto, segurando uma faixa em catalão, que, traduzindo para o português, deixava claro: “ESTIMAMOS A PALESTINA/ DEFENDEMOS A VIDA/ VAMOS PARAR O MUNDO” (figura 5). Além do atrás explorado modo narrativo, note-se inclusive na personificação, como se a Palestina fosse uma pessoa em si mesma, sugerindo representar um conjunto de pessoas, uma população. A propósito delas, a “VIDA”, referindo-se ao caráter humanista e a um sentido contrarreacionário à desumanização associada aos ataques de Israel. Quanto ao “MUNDO”, sugere-se aqui o sentido global do movimento, mas também a capacidade de mobilizar “O MUNDO” para o movimento. Mais ainda: as bandeiras da Palestina, o padrão de fundo da faixa, que remete para o lenço keffyieh enquanto símbolo palestiniano e que se globalizou ainda mais no último ano (Abu-Ayyash, 2024), e outro cartaz atrás, levantado por uma das pessoas do movimento, que destaca o número “25 000” em referência ao número de mulheres mortas em Gaza até então.

Assiste-se à materialização do movimento e à exaltação da intersecção de várias formas identitárias. Podem identificar-se as pessoas que são mulheres, palestinianas, pró-Palestina, vítimas de um conflito bélico, desalojadas, feridas e/ou mortas. A mobilização nas ruas e nas redes sociais do movimento 8M, segundo o elDiario.es, reuniu “dezenas de milhares de pessoas” em Barcelona, uma das primeiras em Espanha a promover este tipo de iniciativas do Dia Internacional da Mulher. Acrescente-se que o governo regional de Barcelona  tem cortadas as relações diplomáticas com Israel desde o ano passado até se alcançar o “cessar-fogo total” e, mais recentemente, a Universitat de Barcelona aprovou uma moção “de apoio à Palestina e contra o “genocídio””. Seguindo outros movimentos globais, várias manifestações de apoio prosseguem, incluindo iniciativas estudantis nas universidades. De seguida, eis um apelo à mobilização para uma manifestação pró-Palestina.

Figura 6: Cartaz de promoção de uma manifestação a ocorrer no dia 20 de janeiro de 2024. Fotografia capturada a 14 de janeiro de 2024. Créditos: Pedro Eduardo Ribeiro.

O cartaz identifica data, local, hora e coletivos envolvidos. Nele, podem ler-se as orações “VAMOS PARAR O GENOCÍDIO SOBRE A PALESTINA”, o “FIM AO COMÉRCIO DE ARMAS E ÀS RELAÇÕES COM ISRAEL”, refletindo os propósitos pelos quais se move a manifestação. O cartaz centraliza e invoca o mapa do Estado palestiniano antes de 1947 e dos acordos com a ONU. Estão presentes no cartaz imagens de misseis a cair sobre o território do lado direito, aludindo a Israel, e de pássaros das cores da bandeira da Palestina do lado esquerdo, aludindo à paz e à sua independência.

Para terminar, Barcelona expõe “contra-visualidades” em lugares de vivências do quotidiano, que constroem “mensagens” que se vão tornando “permanentes” e elas próprias “quotidianas” (Barbosa & Lopes, 2019, pp. 25-26). Retomando La Rocca (2022, p. 20), a cidade carateriza “a experiência vivida através de uma identidade coletiva gerada pelas qualidades sensíveis e a variedade de ambientes encontrada”. Mostra este ensaio que se movem massas que saem às ruas seja pela diversidade de grafismos seja pela própria voz. Com este artigo, sugere-se que, pelo menos, Barcelona, tal qual cartografada visualmente, se manifesta explícita e multimodalmente pró-Palestina. Por isso, respondendo à hipótese lançada na introdução, enquanto cidade-movimento.

Textos e Imagens: Pedro Eduardo Ribeiro
julho de 2024

 

Referências

 

Abu-Ayyash, S. (2024). Representations of palestinian culture in the digital public sphere: A semiotic analysis of the thobe and the keffiyeh. Social Media + Society, 10(1), 1–24. https://doi.org/10.1177/20563051231224274

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