As simetrias e as dissimetrias em Ponta Delgada

“Chama-se Ponta Delgada por estar situada na ponta mais fina da ilha, e olhe, está a ver aquele pico ali, é o ponto mais alto da ilha, com mil e cem metros de altitude, o Pico da Vara. De lá pode ver tudo à volta, caso esteja limpo”.

Estas foram as informações que retive da conversa animada entabulada com o taxista que me levou do aeroporto para o centro da cidade de Ponta Delgada na minha primeira visita à ilha de S. Miguel, a maior ilha do arquipélago açoriano. “Esta cidade de Ponta Delgada é assim chamada por estar situada junto de uma ponta de pedra de biscouto, delgada e não grossa como outras da ilha, quasi raza com o mar, que depois, por se edificar mui perto d’ela uma ermida de Santa Clara, se chamou ponta de Santa Clara…“, explica Gaspar Frutuoso (1522-1591), historiador, sacerdote açoriano e cronista do povoamento de S. Miguel citado na entrada da Wikipédia sobre Ponta Delgada.

Foi assim que se abriram para mim as portas desta cidade. Com descrições de perfis e relevos. Não sei se por isso, mas sei que, no dia seguinte, dei por mim a lançar-me ao Pico da Vara, com toda a força e pujança, face a semelhante desafio hercúleo. E sim, subi àquele topo do mundo: já com a língua de fora, senti cada um dos últimos degraus, para chegar ao cume no meio de um nevoeiro cerrado e gritar aos ventos, que se faziam sentir fortes e frios e molhados, “eu estive aqui”.  Da imensidão de tal espaço apenas me apercebi depois, regressada a casa, ao visionar, num vídeo, este topo do mundo…

Mas esta e outras aventuras pelos trilhos da ilha não tiraram espaço, nem tempo, para a deambulação pelo centro urbano histórico de Ponta Delgada, ao nascer ou ao cair do dia. Andar pelas ruas sem destino e sem propósito, em circuitos mais ou menos fechados, permitiu que algumas das realidades que compõem a cidade ganhassem força, não obstante a brevidade da minha estadia, entre elas:

 

  • A malha urbana constituída por ruas com perfil estreito e com uma extensão que me pareceu, em vários casos, invulgar, com uma tendência para continuar sempre a direito até ao infinito. Ponta Delgada, cidade de linha plana, “a forma mais concisa da infinidade de possibilidades de movimento”, diz-nos Wassily Kandinsky, artista plástico russo, professor da Bauhaus no livro Ponto, Linha e Plano (1922/1996, p. 61).

 

  • Os passeios minúsculos, pavimentados a pedra branca (calcário) e negra (basalto), os materiais convenientes mais a jeito, na base dos quais Ponta Delgada foi construída (Enciclopédia Açoriana). Trata-se de um pavimento que encontramos replicado em praças, jardins e no chão de outros espaços públicos da cidade, com padrões e desenhos muito diversificados, de singular qualidade estética e artística e que está consagrado sob o nome de Calçada Portuguesa. Pelo que podemos averiguar, chegadas a casa, para aprender geometria basta estar atento ao piso que calcorreamos e procurar padrões, simetrias, advoga Ricardo Teixeira, professor de Matemática da Universidade dos Acores. O professor fez desta realidade um pretexto para estimular os estudantes a aderir à iniciativa que denominou como Math & Walk destinada a identificar os vários tipos de simetrias, transformando simples passeios nas calçadas em lições de geometria. Uma iniciativa que culminou, pelo que percebemos, com a publicação em 2013 de diversos roteiros das calçadas existentes no arquipélago.[1]

 

Figura 1. Calçada portuguesa. Créditos: autora (2024)

 

  • Os trabalhos em ferro fundido, das varandas, portões e janelas e a diversidade dos frisos, uma realidade também explorada por Ricardino Teixeira, com Susana Goulart Costa e Vera Moniz, de que resultou o livro Grupos de Simetria: Identificação de Padrões no Património Cultural dos Açores (2015).

 

Figura 2. Trabalhos em ferro. Créditos: autora (2024)

 

  • Porque andamos a estudar a vida quotidiana dos mercados públicos, o edifício do mercado municipal,  localizado na Rua do Mercado,  freguesia de São Pedro, no centro histórico da cidade de Ponta Delgada, tornou-se incontornável. Exemplar da chamada arquitetura do ferro, arquitetura comercial de finais do século dezanove (à semelhança do mercado Ferreira Borges, no Porto (1885) ou do Mercado Municipal de Braga, inaugurado em 1915, está instalado no centro histórico desde 1848, sabendo-se que em 1852 já estava em pleno funcionamento. Anteriormente denominado Mercado do Pelourinho, o Mercado da Graça surpreendeu-me pela atmosfera desoladora que por lá se faz sentir. Nave espaçosa, deserta. Sinais de vida apenas nas laterais da praça central, ao longo dos corredores e nos fundos do espaço. Espaço da venda do peixe, com mais bancas do que clientes, zona de cafetaria, essa sim, com mais gente, corredor dos talhos, com um ou dois clientes. Chegada a casa, confirmei a minha suspeita. Mais um exemplo de um mercado público em projeto de requalificação do equipamento. Segundo conta o Açoriano Oriental, em notícia publicada a 7 de fevereiro de 2024, a obra de requalificação da cobertura do Mercado da Graça, na cidade de Ponta Delgada, foi consignada e iniciada em setembro de 2021 e a sua conclusão estava prevista para agosto de 2022, obra entretanto suspensa, a retomar em junho de 2024, altura em que visitei o espaço: “Obras de Santa Engrácia também as há em S. Miguel” …
Figura 3. Mercado da Graça. Créditos: autora (2024)
Figura 4. Interior do Mercado da Graça. Créditos: autora (2024)

 

E por falar em santos, na tarde em que chegamos a Ponta Delgada decorria a celebração da Solenidade do Corpo e Sangue de Cristo na Igreja Matriz de São Sebastião, com a celebração da eucaristia, seguindo-se a procissão eucarística (Correio dos Acores, 30 de maio de 2024). Porque ficamos a dormir precisamente perto do largo desta igreja, situada no núcleo urbano mais antigo da cidade, foi sobretudo neste cenário urbano que entrei em contacto, ainda que de forma claramente superficial, com fragmentos do movimento quotidiano das pessoas que marcam o ritmo urbano (Lindón, 2017) de Ponta Delgada, sobretudo ao nascer do dia. Práticas quotidianas que se concretizam em lugares particulares. Nos bancos em torno da igreja matriz, ponto de encontro de pessoas sem abrigo ou em situação de rua, como se designa no Brasil este tipo de população. As mesmas caras, as mesmas roupas, impecavelmente vestidas, um dia atrás do outro, que afetam e são afetadas umas por outros, pela simples presença, na sua materialidade. As corporeidades postas em cena dão um tom particular àquele lugar, em certos momentos, ainda que nem todos se conheçam ou falem, comunicando corporalmente algo semelhante. “Só abre às 8: 30”, Repete, dia após dia, a pessoa sentada no chão da entrada do Pingo Doce na marginal da cidade. Ora em português, ora em inglês, um encadeamento de espaços de vida, em mais outro cenário urbano fugaz que marcou a estadia. Trata-se de uma realidade incontornável do quotidiano da cidade e da sua textura, que se tem vindo a agravar no arquipélago, em especial em S. Miguel, a ilha mais populosa do arquipélago. Situação atestada por estudos desenvolvidos na Universidade dos Açores, dos quais destacamos os desenvolvidos pelo sociólogo Fernando Diogo  (2019, 2021) que trabalha desde 1991 a questão da pobreza e da exclusão social  e o relatório À margem – trajetórias de vida de rua que faz um levantamento e caraterização sociodemográfica das pessoas em situação de sem abrigo na Região Autónoma dos Açores, elaborado pelos investigadores Paulo Vitorino Fontes, Hélder Rego Fernandes e Lídia Canha Fernandes.

Dissimetrias que me levam a outro tipo de fluxos que marcam o quotidiano da cidade, nomeadamente, os migratórios e os turísticos. Foi assim que terminamos a viagem à mesa do restaurante a Tasca, um dos restaurantes mais concorridos no centro da cidade, com dois casais, ambos em férias. Um casal jovem austríaco e outro já de idade avançada, um par de reformados, nascidos em Angra de Heroísmo, com toda uma vida feita nas “Califórnias perdidas de abundância”, expressão retirada do poema A Ilha de Pedro da Silveira, poeta nascido na Ilha das Flores, ponto em que a Europa e a América mais se aproximam uma da outra.

Este ano o casal açoriano veio acompanhado com os filhos e netos, também em turismo pela ilha de S. Miguel. O homem terceirense deixou a sua ilha aos 16 anos, ele e os restantes 12 membros da família, pais e irmãos. Regressa todos os anos para a Festa do Corpo de Deus em Angra do Heroísmo, a qual, segundo nos contou, continua a motivar o retorno anual de muitos terceirenses aos Açores. Contou-nos que revisita os lugares de memória, matando a saudade do passado, do tempo da ilha, da infância e juventude, através do visionamento de vídeos no Youtube, feitos com gentes e espaços da sua ilha natal. É assim que o terceirense, companheiro fugaz de mesa de jantar, revisita os lugares de memória que conhece e a vivência entrelaçada das coisas e das pessoas. Imaginei o muito que teria a contar este homem da sua ilha, que aos meus olhos reverberava a saudade do “corsário das ilhas”, assim descrita:

 

“Reconheço os lugares, as relações das pedras, – mais nada! (…) Já cá não está o Salvador com a sua barba branca de guardião paradisíaco; já se não ouvem lá em cima as tacadas do croquete nas tabelas e o António dos Santos, quixotesco, esfregando as mãos: – Bela bola! Mas a alma do jardim é esta… O segredo da vida aqui está! Ali foi o caramanchãozinho das gueixas e o mais que se mudou, acolá sentavam-se o sr. Vilar, o sr. Picanço… O sr. Vilar, que, pigarreando, proclamava de quarto em quarto de hora contra a inanidade ilhoa: – No Continente, sim! Isso é que são terras!” (Nemésio, 1983, p. 111)

 

Ilha transfigurada pela saudade, ponto de partida, recordação e sonho. Diz Natália Correia no seu “Retrato talvez saudoso da menina insular”:

 

Tinha o tamanho da praia

o corpo que era de areia.

E mais que corpo era indício

do mar que o continuava.

Destino de água salgado

principiado na veia.

E quando as mãos se estenderam

a todo o seu comprimento

e quando os olhos desceram

a toda a sua fundura

teve o sinal que anuncia

o sonho da criatura.

Largou o sonho no barco

que dos seus dedos partiam

que dos seus dedos paisagens

países antecediam.

E quando o corpo se ergueu

voltado para o desengano

só ficou tranquilidade

na linha daquele além

guardada na claridade

do coração que a retém

(Correia, 1993, p. 57)

 

Braga, 30 de agosto de 2024

Zara Pinto-Coelho

 

Notas

[1] Os itinerários de simetria, bem como alguns textos de apoio e diversas notícias publicadas sobre o assunto, estão disponíveis nesta página, onde também é possível encontrar muita informação sobre as simetrias no artesanato, na azulejaria e nas varandas: https://sites.uac.pt/rteixeira/divulgacao/. Ricardo Teixeira publicou, em 2015, com Susana Costa e Vera Moniz, um livro em que aprofunda os estudo das simetrias enquanto parte do património cultural do arquipélago.

 

Referências

Açoriano Oriental. (7 de fev., 2024). Obra para concluir requalificação de mercado em Ponta Delgada deve arrancar em junho. https://www.acorianooriental.pt/noticia/obra-para-concluir-requalificacao-de-mercado-em-ponta-delgada-deve-arrancar-em-junho-357649

Carreiro, P. (2013, 30 de janeiro).  Ilha, Pedro da Silveirahttps://folhadepoesia.blogspot.com/2013/01/ilha-pedro-da-silveira.html

Correia, N. (1993). O sol nas noites e o luar nos dias. Círculo de Leitores.

Correio dos Açores (2024, 30 de maio). Ouvidoria de Ponta Delgada organiza celebração conjunta de todas as paróquias na Solenidade do Corpo de Deus. https://correiodosacores.pt/?s=Ouvidoria+de+Ponta+Delgada+organiza+celebração+conjunta+de+todas+as+paróquias+na+Solenidade+do+Corpo+de+Deus&id=309&post_type=post

Diogo, F. (2021) (Coord.). A pobreza em Portugal. Trajetos e quotidianos. Fundação Manuel dos Santos.

Diogo, F. (2019). Algumas peculiaridades da pobreza nos Açores, Sociologia Online, 19, 81-101.

Kandinsky, W. (1926/1996). Ponto, linha, plano. Contribuição para a análise dos elementos picturais. Ed. 70.

Lindón, A. (2017). La ciudad movimento: cotidianidades,afectividades corporizadas y redes topológicas. Immediaciones de la Comunicación, 12(1), 107-126

Lusa online. (21 de set., 2013).  Roteiros explicam matemática nas calçadas dos Açores. Açoriano oriental. https://www.acorianooriental.pt/noticia/roteiros-explicam-matematica-nas-calcadas-dos-acores

Fontes, P. V., Fernandes, H. R. & Fernandes, L. C. (2022). Estudos à margem: Relatório de caraterização sociodemográfica. http://hdl.handle.net/10400.3/6434

Mercado da Graça (s.d.). https://www.cm-pontadelgada.pt/pages/1240

Nemésio, V. (1956/1983). Corsário das ilhas. Bertrand.

Ponta Delgada (Concelho) (s.d.). In Enciclopédia Açoriana. http://www.culturacores.azores.gov.pt/ea/pesquisa/Default.aspx?id=9457

Ponta Delgada. (s.d.). In Wikipedia. https://pt.wikipedia.org/wiki/Ponta_Delgada

Teixeira, R.; Costa, S. & Moniz, V.  (2015). Grupos de simetria: identificação de padrões no património cultural dos Açores. Associação Ludus/Apenas Livros https://repositorio.uac.pt/handle/10400.3/4217

Teixeira, R.  (s.d.). https://sites.uac.pt/rteixeira/divulgacao/

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LOCAL: Açores

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