As montras das mortes na Póvoa de Varzim

O título aqui expresso poderia estar vinculado a mais um excêntrico capítulo emplacado às rotinas urbanas contemporâneas. No entanto, ainda que seja passível haver episódios estonteantes no município da Póvoa de Varzim no tocante à morte, frustro o leitor que busca uma narrativa com algum espírito sensacionalista. Por sua vez, arrisco em dizer que o tema que lanço possa ser visto por muitos como curioso, ou mesmo excêntrico.

Tratar da morte é um exercício ocasional para grande parte das pessoas, mas há profissionais que seguem essa prática em sua rotina, inclusive atuam em ambientes que vibram em torno dos óbitos. No entanto, é comum que essa sombra da vida seja esgueirada dos nossos olhares. Uma dinâmica compreensível quando pensamos nas diferentes estratégias criadas pelo ser humano para negar esse destino certeiro (Morin, 1970). Quando a morte bate à porta, os mais reflexivos podem questioná-la com o apoio dos filósofos, percebendo diferentes máximas diante dos (des)caminhos que a morte nos impõe (Critchley, 2020). Os campos da História e da Arte também oferecem fontes para refletirmos sobre a nossa finitude e até mesmo a banda desenhada, mais especificamente a personagem “Dona Morte”, de Maurício de Sousa (Araújo, 2022), apresenta o tema para o público infantil de modo chistoso.

Ainda que tenhamos um coletivo de exemplos que nos aproxima da morte, como detetado pelo historiador Philippe Ariès (2000), foi gerado em meados do século XX nos Estados Unidos e no noroeste europeu um tabu em torno do tema, dado o propósito de preservar a felicidade nas sociedades ocidentais industrializadas. Cabia a poucos violar essa tônica, como antropólogos, médicos ou psicólogos, por exemplo. Por sua vez, os ecos de uma grande saúde — insuflada pela utópica saúde perfeita, higienista, apoiada na biotecnologia (Sfez, 1996) —, busca encobrir e ceifar essa manifestação mais natural da vida e seu fim.

No entanto, a morte se entranha nas expressões culturais e se imiscui no universo urbano. Por sua vez, ela está presente no mundo imagético. Além das cenas expressas nas telas, cabe pensarmos no quanto os nossos sentidos se tornam perecíveis diante o privilégio dado à visão e às pontas dos dedos. Vista por essa dinâmica, a morte também tem atuado incessantemente e insanamente ao ceifar o nosso maior valor, o tempo, o qual está estritamente vinculado à finitude de nossas vidas. Essas premissas nos inspiram a refletir sobre o processo iconofágico defendido por Norval Baytello (Serva & Guimarães, 2022), pois se percebe uma devoração das nossas vidas por parte das imagens.

Além dessa panóplia de indicadores que sinalizam a morte e como ela se emaranha às nossas vidas, indico outras esquinas onde podemos encontrá-la. Para tanto, seguiremos para as ruas da Póvoa de Varzim, onde as fotografias de pessoas falecidas são impressas em folhas brancas e anexadas em distintas vitrines espalhadas pela cidade. Cabe dar atenção que essas imagens a ilustrar o morto, selecionadas pela família do mesmo, são registos captados do período de vida do falecido. É válido salientar esse mote, pois, diferente de nossa conduta contemporânea, retratar o morto é algo naturalizado e adotado em outros tempos e lugares (Hermosilla & Krause, 2022).

 

Figura 1. Diferentes tipos de Passagem (ou “Passagem para paraísos turísticos tendo em vista o bem-estar para a caminhada”)

No que toca às montras, elas reservam diferentes aspetos, pois há distintos segmentos comerciais que cedem esse espaço para que as folhas sejam ali anexadas. Além dos estabelecimentos inativos, há cafés, padarias, salão de beleza, mercearias, floriculturas, entre outros, que permitem essa divulgação. No caso dos suportes envidraçados, a transparência origina cenas peculiares, pois, como salienta Baudrillard (1997), o estado do vidro permite isolar um ambiente e, ao mesmo tempo, introduz-nos ao mundo interior. Com isso, a depender do segmento comercial vinculado à cada vitrine, as folhas impressas relacionadas aos óbitos ganham contornos distintos, criando uma panóplia de signos que reivindicam nosso olhar. Apoiados em Floch (1997), inferimos que se cria ali os jogos ópticos mencionados pelo autor, um fenômeno em que serão percebidas diferentes composições face ao que se mostra e ao que se olha.

 

Figuras 2 e 3. Entre o fora e o dentro dos cafés, são expressas as regras e a morte é reintegrada pelos eventos católicos

O conjunto de folhas ali expostas ocupa uma parte limitada das montras, pois o espaço é determinado pelo comerciante. Um proprietário de uma das funerárias da cidade explica que essa cedência está vinculada a uma relação cordial entre as partes, sem envolvimento econômico. No entanto, o empresário reconhece que alguns estabelecimentos, como as floriculturas, demonstram um interesse particular por manter essa divulgação, pois as informações tornam-se um atrativo para o público consumir seus produtos.

 

Figura 4. A senhora Florinda enaltece o espaço que leva o seu próprio nome

Diante desse limite, há uma logística a ser seguida por algumas funerárias. As informações que tratam do falecimento são expressas no formato A4 e na posição horizontal, por exemplo, para que o rosto do finado ganhe mais relevância quando impresso; e para outras datas, como missas e celebrações anuais, os dados são enquadrados no formato A5. Ao conferir as montras pela cidade se pode perceber que esse modelo nem sempre é seguido.

Figuras 5 e 6. Entre negócios e óbitos: Santos, eletrodomésticos, vícios e refeições

O gestor da funerária ressalva que essa divulgação é um serviço extra a ser pago pelos familiares do morto e que esse sistema de divulgação está vinculado à tradição da cidade, salientando que se trata de uma comunidade de pescadores. Ainda que os média sociais já estejam a cumprir o papel de mensageiros das mortes que ocorram na cidade, inclusive, sendo mais eficiente, por alcançar um público maior e com rapidez, as vitrines da Póvoa de Varzim mantêm esses anúncios fúnebres nas montras.

Por certo, há muito a explorar sobre a morte a partir daqui, inclusive para melhor perceber a vida e a morte desses rostos enunciados e conferir o quê e quem deixaram e para onde os levaram.  Por sua vez, os cemitérios tornam-se um espaço merecedor de visitas para aqueles que buscam conhecer melhor uma comunidade e sua cultura. Há lugares onde eles se tornam atração turística ou centros culturais, contribuindo para mostrar outras molduras e signos em torno da passagem para a morte.

 

Texto e imagens: Cynthia Luderer (CECS/Universidade do Minho)

Publicado a 15 de maio de 2025

 

Referências

Araújo, C. (2022, 29 de abril). Uma conversa com Mauricio de Sousa sobre a (Dona) Morte. Olhar Jornalístico [Blog]. https://www.olharjornalistico.com.br/index.php/social/15812-uma-conversa-com-mauricio-de-sousa-sobre-a-dona-morte

Ariès, P. (2000). Historia de la muerte en occidente: De la edad media hasta nuestros días.  Acantilado.

Baudrillard, J. (1997). O sistema dos objetos. Perspectiva.

Critchley, S. (2020). O livro dos filósofos mortos. Edições 70.

Floch, J. (1997). Apresentação. In A. C. Oliveira. Vitrinas: Acidentes estéticos na cotidianidade (pp. 9 -13). EDUC.

Hermosilla, J.O, & Krause, E.G. (2022). Autorreferencialidad y clausura del imaginario mediático a fines del siglo XIX. Reflexiones a partir de un retrato feminino en mosaico. In S. Barbotto, C. Voto & M. Leone (Eds.) Rostrosferas de América Latina: Culturas, traducciones y mestizajes (pp. 51-71). Aracne.

Morin, E. (1970). O homem e a morte. Publicações Europa-América.

Serva, L., & Guimarães, L. (2022). Norval Baitello Junior: da iconofagia à ecologia da comunicação: As imagens e o corpo na comunicação e na cultura. Matrizes, 16(2), 123-133. https://doi.org/10.11606/issn.1982-8160.v16i2p123-133

Sfez, L. (1996). A grande saúde: Critica de uma nova utopia. Loyola.

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