As lições estéticas dos morangueiros – polis em ação
A pretexto do Seminário de Cultura Visual, organizado pela Passeio e GICCA (Grupo de Investigadores em Comunicação, Ciência e Ambiente) a 09 de maio de 2023, mergulhamos em duas hortas urbanas de Braga: Lameiras – da União de Freguesias de Tenões e Nogueiró – e STOL (Science throught our lives), da Universidade do Minho. Encetamos esta caminhada a pensar nas lições estéticas dos morangueiros, mas o caminho desviou-nos, afinal, para a dimensão social e política da horta. Prossiga connosco neste passeio pelos sentidos.
O fenómeno das hortas comunitárias tem vindo a crescer nas cidades, conferindo uma espacialidade que, segundo Chiara e Chiara (2019), está relacionada a um gesto político, que contribui para conectar os pilares da sustentabilidade: o da ecologia, o social e o económico. Braga é um dos municípios que desponta nessa frente e, desde 2013, tem investido nas hortas urbanas (Quinta Pedagógica de Braga, 2021). Um olhar, ainda que casual, permite identificar, desde logo, vantagens societárias, ambientais e políticas neste investimento, o que parece justificar o compromisso do poder público diante dessa missão. Pode-se alegar, por exemplo, “a produção de alimentos, a construção de comunidades, a redução de problemas socioeconómicos […] a mitigação das alterações climáticas, com claros benefícios ao nível da biodiversidade e melhoria da paisagem” (Quinta Pedagógica de Braga, 2021, p. 5). Tratando-se de Soluções Baseadas na Natureza (SBN), as hortas, além de agregarem valor para a mitigação climática, contribuindo para equilibrar os microclimas urbanos e a regulação da água, fornecem alimentos e geram diferentes ensejos, que promovem a saúde e o bem-estar dos munícipes, reduzindo então as desigualdades ambientais e, assim se espera, as sociais (Cabral et.al., 2017; da Costa & Sakurai, 2021). Não contrariando o valor destes argumentos, tentaremos, neste exercício ensaístico, desviar o interesse do leitor para o manancial percetivo e imagético das hortas, ativando os olhos de rapina para o que, metaforicamente, chamamos as lições estéticas dos morangueiros, que acabará por ser, veremos depois, uma prática política radicada na estética (Saito, 2017).
Para perceber as minuciosas riquezas no contínuo tom de verde dessas espacialidades, é preciso desnudar-se, dizemos, se pôr mais leve, e sobrevoar esse pequeno e restrito horizonte com a sua alma para perceber, como uma águia, suas minúcias e aumentar aos poucos o seu ângulo de visão, de olfato, de sensação. Entre humanos e não humanos, descortina-se nesse pequeno-grande mundo uma estética em permanente mutação.
Mas, como podem os tímidos talhões de terra que se inscrevem na paisagem urbana, conter sentidos estéticos e convocar-nos para outras formas de sentir as cidades? Que ilações podemos extrair da relação entre experiência estética e ambiente? O fim de tarde primaveril em Braga, com o sol a cair sobre os morangueiros, acelgas e beterrabas em raios oblíquos, contribuiu para o efeito onírico na horta das Lameiras, traduzindo-se num impulso para acender diferentes reflexões.
Em cada pequeno de talhão, em quase uma centena que lá há, misturam-se alfaces com arbustos floridos, limoeiros e pequenos cogumelos de louça. É provável que o bucolismo nos invada e que pensemos na perfeição das palavras de Berleant (1992). Sim, o mundo pode ser um lugar melhor, por simbiose entre ação humana e natureza. Mas logo Cristina Costa (técnica da Divisão do Ambiente da Câmara de Braga, que serviu de guia nesta visita) insere algo diferenciado às nossas vistas: um pequeno embrulho com minhocas americanas, um exemplar húmido e terroso de vermicompostagem. Tal ensejo fez perceber que a horta implica sujar as mãos, enterrar os pés na lama, combater ervas daninhas, suar e desesperar, mas também trocar e ganhar conhecimentos. Por sua vez, os comentários relativos às minhocas avermelhadas ali expostas, sobretudo em comparação com as originárias portuguesas (mais pequenas e menos laboriosas), provocam riso, ao mesmo tempo que estimulam questões geopolíticas nessa ceifa, provando que o tema das hortas se presta a distintas ilações.
Estar ali implica também abrir-se a um encontro de comunidades, pois que, não só pessoas de diferentes nacionalidades e faixas etárias se juntam neste percurso, como também podemos perceber esta diversidade nos diferentes talhões, cuidadosamente personalizados ao gosto e proveito destes hortelãos amadores. Distanciando-nos das perspetivas estéticas da arte musealizada e da contemplação distanciada, mas aproximando-nos do ideal do sublime que qualquer experiência estética convoca, propomos exacerbar os nossos sentidos, para as dimensões presentes nas hortas comunitárias.
Visão
O que primeiro sobressai na hora é a dimensão visual. Afinal, vivemos em uma sociedade absolutamente imagética, e os olhos tornam-se um dos sentidos mais convocados no nosso cotidiano. Mas, vale a atenção a esse repertório, pois não são só as cores que se misturam na micro-paisagem exposta à observação. Também a configuração do espaço é tentadora, pelo muito que se faz com pouco, pelas estacas que seguram ervilhas e tomateiros. Mesmo com alguns sinais do caos, as silhuetas das peças mostram-se controladas diante do que se perceciona, quer na horta das Lameiras, quer na do STOL. Alfaces em erupção em sacos de sarapilheira, aromáticas caindo de uma horta vertical, maracujás enredando-se na sebe compunham num todo predominado pelo verde.
Sabor
Uma estratégica pausa na Universidade do Minho, provocou as papilas gustativas. Mas a sugestão visual também se agregava ao cenário, enquanto que as gotículas em torno das jarras de vidros transparentes convocavam à gula. Não se tratava de uma água qualquer, era saboreada em frescura, em infusões aromáticas colhidas na horta do STOL. Limão e hortelã, limonete com morangos. Se há lição estética a extrair dos morangueiros, aqui está ela, condensada numa caneca de água aromatizada, goles de sabor, que nos atiram para a dimensão social da estética dos morangos, suas mágicas transformações e do próprio quotidiano. Um jarro que nos faz palrar.
Olfato
Não se trata do paladar sem tocar no olfato, pois ambos estão intimamente ligados. Como parte do sofisticado grupo dos cinco sentidos tradicionais, o olfato também convoca a memória. Afinal, as lembranças chegam-nos, muitas vezes, pelos odores e aromas. Não é difícil perceber nas hortas o acentuado cheiro das ervas aromáticas quando o vento as toca. Somos, contudo, e talvez por isso mesmo, tentados a pegar, sentir e, por fim, cheirar, adivinhando um gosto. Alecrim, hortelã, salsa, coentros e tomilhos tornam-se, desde ali, os elementos basilares para uma gastronomia aprimorada. Com grande representação, as infusões também indicam o poder do olfato. Se fosse visível, é possível que veríamos constelações em diferentes tons de verdes quando suas folhas são tocadas ou espremidas entre os dedos. No entanto, nem todas as plantas ganham nosso encanto. As arrudas, por exemplo, são icónicas no que se refere ao seu odor, no entanto, essa sua característica as põem em um pedestal quando se trata dos ovos depositados pela borboleta-cauda-de-andorinha, pois as plantas são adequadas para alimentar as futuras lagartas.
Tato
Não é que queiramos saber como é sentir uma minhoca americana, que se contorce em humidade. Mas Cristina pega nelas, lembrando-nos que, se vemos morangos vermelhos a eclodir, é porque se alimentaram da riqueza da terra. É verdade que, na nossa cabeça ainda oitocentista, muito embora a disrupção da pós-modernidade tenha intervindo, o estético é o belo. Definitivamente, o licranço (um réptil muito confundido com uma cobra, mas que é, na verdade, um lagarto) não encaixa no nosso ideal de beleza. Contudo, na friagem do final do dia, na horta do STOL, não é expectável que os licranços (que gostam do calor do sol) nos presenteiem com uma visita. Mas Alexandra Nobre (professora no Departamento de Biologia da UMinho, dinamizadora da Horta do STOL e guia na visita a este talhão instalado em pleno terreno da universidade) encontra-os por aqui amiúde, não há perigo, todos somos um animal entre muitos, partilhando espaço com as joaninhas, abelhas, aranhiços e outros insetos quase inomináveis.
A horta – ação política
Retomamos, depois deste percurso sensorial, o poder estético, defendido por Saito, para argumentar, como o autor, que a nossa consciência ambiental é influenciada pela experiência estética. Não se trata, apenas, de sentir o gosto da hortelã e louvar a perfeição dos morangueiros. Ao conhecer, ao cuidar, ao ornamentar e ao tratar, estamos, efetivamente, a agir, sendo que a nossa ação tem uma extensão política em toda a linha na vida da polis. Esta ação é, simultaneamente, ética e estética, pois que deriva dos gestos quotidianos da horta, da “aparência sensual das ações e dos objetos” (Saito, 2017, p. 150), concretizados pela labuta agrícola.
Texto: Cynthia Luderer e Teresa Lima
Imagens: Passeio/CECS.
Publicado a 26-05-2023
Referências
Berleant, A. (1992). The aesthetics of environment. Temple University Press.
Cabral, I., Costa, S., Weiland, U., & Bonn, A. (2017). Urban Gardens as Multifunctional Nature-Based Solutions for Societal Goals in a Changing Climate. In N. Kabisch, J. Stadler, & A. Bonn (Eds.), Nature-based solutions to climate change adaptation in urban areas: Linkages between science, policy and practice (pp. 237-253). Springer Open.
Chiara C. (eds.) (2019). Urban Gardening as Politics. Routledge.
Costa, B. M., & Sakurai, T. (2021). A participação comunitária em projetos de soluções baseadas na natureza na cidade de São Paulo: estudo das hortas urbanas, horta da dona sebastiana, agrofavela-refazenda e horta popular criando esperança. Revista Labverde, 11(1), 171-195.
Quinta Pedagógica de Braga. (2021). Rede de Hortas Pedagógicas de Braga. Câmara Municipal de Braga. http://quintapedagogica.cm-braga.pt/wp-content/uploads/2017/02/Rede-de-Hortas-Urbanas-de-Braga.pdf
Saito, Y. (2017). Aesthetics of the familiar: everyday life and world-making. Oxford University Press.
LOCALIZAÇÃO
LOCAL: Braga
LATITUDE: 41.5607319
LONGITUDE: -8.3962368