As desventuras do Tuga-Zuca e do Zuca-Tuga pelos arredores de Lado Nenhum

Era uma sexta-feira, por volta das 18h e eu estava nessa Terrinha há pouco mais de 48 horas. Após um dia de muita informação sobre o meu novo lugar de trabalho, decidi tomar uma cervejinha pois, afinal, era uma sexta-feira e fui picado pelo mosquito do “Sextou” que acomete a tantos Brasileiros.

 

Por conta da boa recepção que tive, optei mais uma vez pelo 100 Montaditos, pedindo um “fino grosso”, vulgo uma caneca de 50cl. Já ao chegar, noto que há um gajo muito falante na mesa ao lado. Aparenta ser Zuca (Brasileiro), mas fala meio Tuga meio Zuca, em um português hibridizado, cuja gramática é quase 100% do português de Portugal, mas o sotaque é claramente Português Brasileiro, mais especificamente nordestino. Tal gajo, que aqui chamarei de Zuca-Tuga, diz que consegue puxar conversa com qualquer um, desde que a pessoa também esteja disposta a conversar. Ele e seu colega estão a falar por alto sobre o Brasil, com o Zuca-Tuga dizendo que lá no Brasil as coisas se resolvem de maneira muito mais fácil que cá em Portugal, mas não percebo do que estão a falar exatamente, acredito que seja sobre burocracia em geral. É difícil de entender por conta de muitas conversas atravessadas, já que o 100 Montaditos está bastante cheio, mas nosso Zuca-Tuga parece ter tido uma infância um pouco difícil, citando alguns episódios de abusos domésticos quando ainda era pequeno. Ao que tudo indica, ele conheceu seu amigo de mesa recentemente, senão mesmo neste dia em questão.

 

Ao observar as mesas que me rodeiam, noto que há um outro solitário a ouvir música com apenas um fone nos ouvidos, talvez para que possa observar o ambiente assim como este que vos escreve. Nestes primeiros dias, noto que é relativamente comum de se sentar à esplanada e apenas observar o ambiente, pois há uma outra mulher sentada solitariamente a fazer o mesmo. Na minha São Paulo, acredito que isso seria deveras impossível, pois o ritmo frenético nos impede de só apreciar e observar o ambiente.

 

Figura 1. O início das desventuras – ainda solitário

 

Volto a ouvir a mesa do Zuca-Tuga e me questiono se o seu colega, que chamarei de Tuga-Zuca, é Português ou Brasileiro. Pelos fragmentos que ouço, o Tuga-Zuca nunca foi ao Brasil e ao mesmo tempo diz para o colega da mesa ao lado que “está fodido com este Brasileiro“, entretanto, o Zuca-Tuga parece falar mais o português de Portugal do que o Tuga-Zuca, pois o Tuga-Zuca utiliza de muitas expressões e gírias brasileiras, num certo fenômeno de hibridização linguística que inverte a lógica de colonizador-colonizado. Nas outras mesas, nota-se que boa parte dos clientes do 100 Montaditos são pessoas negras e bastante retintas a falar um português mais próximo do português de Portugal, ou seja, muito provavelmente são provenientes dos PALOP ou descendentes destes. Na Padaria Montalegrense, logo ao lado, é possível perceber que o público é quase exclusivamente composto de pessoas portuguesas, enquanto no 100 Montaditos a maioria é imigrante.

 

São 19h15 e vejo que a moça solitária foi ao banheiro, deixando a sua bolsa em cima da mesa e sem ninguém para ficar de olho. Um casal, inclusive, chega a sentar na mesa por estar vazia, mantendo a bolsa intocada. Para mim, toda esta cena seria inconcebível no Brasil, desde deixar os seus pertences sem pedir para alguém observar, até mesmo de outras pessoas sentarem-se em um lugar que, à princípio, estaria ocupado e com pertences alheios.

 

No que volto a minha atenção para a mesa “dos dois”, ouço o Tuga-Zuca a dizer que “se é cigano, não há respeito nenhum“, ficando sem entender se isto era uma demonstração de sua intolerância com ciganos ou se era uma espécie de autocrítica ao seu próprio povo, visto que na minha ignorância, o Tuga-Zuca se assemelhava à ideia estereotipada que eu teria sobre ciganos que vivem em bairros sociais, por conta de suas vestes simples (calças jeans e uma regata branca à la “Vin Diesel”) e comportamento expansivo e explosivo. Já nosso Zuca-Tuga contra-argumenta, dizendo “meu parceiro, precisas de ser mais aberto para com as pessoas. Eu mesmo já entrei em favelas, sou maloqueiro e gosto de toda a gente. Todo mundo tem alguma coisa para contribuir e só descobrimos se a gente conversar uns com os outros”.

 

Inicia-se uma breve discussão entre os dois, pois o Tuga-Zuca recebeu uma ligação e informou que já estava no autocarro voltando para casa, entretanto, o Zuca-Tuga o impediu e decidiram tomar “a última”. Neste meio-tempo, o Tuga-Zuca tenta capturar a atenção de duas mulheres da mesa ao lado, que não esboçam qualquer reação aos seus avanços, para o que o Zuca-Tuga responde: “se fosse na minha terra, isso já estaria resolvido em 2 minutos, pois quando a mulher quer, ela quer e não tem jeito”. Vale ressaltar que, em descoberta posterior, porém na mesma noite, fiquei sabendo que a ligação recebida pelo Tuga-Zuca era de sua esposa. Pobre mulher, deu o azar do marido pegar o autocarro mais lento do universo…

 

Por volta das 20h, apesar de ainda estar bem ensolarado, por sentir que eu estava diante de uma história interessante, decidi me aproximar dos dois, pedindo para que vigiassem a minha mochila enquanto eu ia ao banheiro. Ao retornar e agradecer por vigiarem a mochila, o Tuga-Zuca — muito animado — me cumprimenta e acaba por derrubar a sua caneca de cerveja, que ainda estava quase cheia. Me ofereço para pagar-lhe outra caneca, gesto que faz o Tuga-Zuca se levantar e dizer: “tá doido, meu irmão? Pagar porque eu derrubei? Eu é que vou te pagar uma porque você é gente boa!”. Sendo assim, me juntei à mesa dos dois e pude descobrir um pouco mais destas duas singelas personalidades. Ambos trabalham “na obra”, sendo operários do setor de construção e tinham recebido o seu ordenado, em dinheiro vivo, naquele dia. Haviam se conhecido há cerca de duas semanas e, como suspeitei, ainda estavam a se conhecer, com aquela noite de cervejas sendo a primeira vez que saíram juntos. 

 

Os dois não podiam ver uma mulher que achassem bonita, pois a conversa então ficava focada tão somente nisso — este era o ponto que mais tinham em comum. O Tuga-Zuca, inclusive, tomou a atitude de se juntar à mesa do lado e insistia em pagar bebidas para um trio de mulheres que aparentavam ser angolanas. Após o Zuca-Tuga convencê-lo a retornar à nossa mesa, o Tuga-Zuca esbravejava: “elas acham que são melhores que eu porque são pretas? Somos da mesma família, pá!” e apontava para seu braço, que era um tanto bronzeado, mas claramente o braço de uma pessoa branca e não-negra. Esta cena me causou grande confusão quanto à aplicação de conceitos étnicos aqui na Terrinha. De toda maneira, após muito insistir, o Zuca-Tuga convenceu o Tuga-Zuca a mudar de bar, pois sentia que o colega estava a passar do aceitável e que poderia nos trazer problemas. Entretanto, não conseguimos sair do Montaditos sem o Tuga-Zuca prometer uma rodada de cervejas para as supostas angolanas.

 

Enfim, às 21h, conseguimos migrar, com destino aos “bares da Universidade”, que cunhei de “arredores de Lado Nenhum” devido ao nome de um dos bares presentes no recinto, cujo nome me pareceu um tanto poético. Assim que nos aproximamos dos bares, o Tuga-Zuca parou repentinamente aos berros: “aí eu não posso ir não, primo. Saí aos sopapos com um gajo por estes sítios na semana passada”. Achei curioso como, conforme íamos ficando mais íntimos, o Tuga-Zuca deixou de nos chamar de “irmão” ou “irmãozinho” e passamos a nos tornar “primos”. Enquanto convencia o Tuga-Zuca de que não teríamos problemas, o Zuca-Tuga lhe pedia respeito e apelava que, mesmo que já tivesse quatro filhos, não queria que o “primo” se comportasse como uma criança.

 

Figura 2. O público dos “arredores de Lugar Nenhum”

 

Assim que nos sentamos na mesa do novo ambiente, nosso Tuga-Zuca apanha um pacote do bolso e, subitamente, temos um cume de neve na superfície de seu telemóvel. O Zuca-Tuga se espanta e apela: “primo, você não pode fazer esse tipo de coisa aqui. Eu não quero confusão, se for para você fazer esse tipo de coisa, vá para a casa de banho”, tomando o telemóvel do gajo e seguindo em direção à casa de banho, indicando que esperava que o Tuga-Zuca o seguisse. Não foi o caso, pois o Tuga-Zuca se manteve sentado à mesa e me disse: “ô chavalo, este gajo acha que pode mandar em mim, tás a ver? Eu faço o que eu quero pois ninguém manda em mim!”. Ao pronunciar tais palavras, nosso Tuga-Zuca apanhou um novo pacote, enfileirou quatro carreiras diretamente na mesa e sugou uma delas como se fosse um aspirador de pó recém-comprado. Eu, espantado, me questionava onde é que fui parar, enquanto o gajo da mesa ao lado também se surpreendia e exclamava: “foda-se, isto são 120 euros, pá!“. Este novo gajo português, que chamarei de “Charro” – devido a seu apreço por fumar erva, subitamente se juntou a nossa mesa e pediu permissão ao Tuga-Zuca para aspirar uma das carreiras enfileiradas, o que lhe foi permitido sem hesitação por parte do Tuga-Zuca: “claro, irmãozinho! Aqui é tudo nosso, esta é a minha tropa!”.

 

Figura 3. A mesa da “tropa”

 

Os próximos 30 minutos foram dos mais frenéticos que já pude presenciar. Para começar, os novos amigos Tuga-Zuca & Charro se entenderam muito bem, pois seu comportamento com as mulheres era muito similar, isto é, olhavam-nas como pedaços de carne, salivando, e por vezes até mesmo uivando. Uma cena que ainda não saiu da minha mente é quando observavam uma garota e diziam (ou gritavam) entre si: “olha lá, ela vai virar agora. Ai, olha, olha… ai que cu, ai, ai… olha que fisgada, ai, ai…” enquanto ganiam e uivavam como cães. Outras vezes, tentavam se engajar com as mulheres (sempre imigrantes, devo notar), intrometendo-se entre mesas e conversas, oferecendo bebidas e convidando-as para a nossa mesa. O que justificaria tal comportamento? Seria uma relação de poder colonial, de gênero ou ambos? Ou estaria ligado a um dado imaginário social? Tomemos como exemplo o caso da “mulher Brasileira” em Portugal, cujo imaginário “remete a aspectos físicos (bonitas, corpos, bumbum) e comportamentais (sensualidade, atraentes, desinibidas, sem pudor, à vontade, abertura, facilidade). Em alguns casos, as mulheres brasileiras são explicitamente identificadas com sexo. As ideias de beleza, sensualidade e disponibilidade sexual parecem estar imbricadas entre si no imaginário de mulher brasileira” (Gomes, 2013, pp. 873-874)

 

Em dado momento, vou ao banheiro e decido pegar mais uma caneca de cerveja para mim, enquanto revisava uma porção de notas etnográficas. É nesta hora que me surge o Tuga-Zuca junto às três Angolanas do Montaditos. Nosso Tuga-Zuca ia, enfim, pagar as bebidas que prometeu (e que elas estavam, realmente, a cobrar). Enquanto lhes garantia que pagaria as bebidas, cochichava em meu ouvido: “ô primo, me faz essa para eu não passar vergonha e eu pago a sua. Eu havia prometido para duas e agora me apareceram três”. Será que ele havia esquecido que eram três? É capaz. Será que é possível que eu recuse? “Este gajo é maluco, é pior se ele deixar de gostar de mim” – pensava eu, decidindo por pagar.

 

Voltamos à mesa e o Zuca-Tuga tentava, a todo custo, acalmar o Tuga-Zuca, apelando: “primo, senta um pouco e para de ir atrás de mulher. Não é assim que se faz, na minha terra a gente conversa, não dá pra chegar como tu ‘tás a fazer não. Lá no Brasil, tu apanhava se fizesse isso que ‘tás a fazer”. O “primo” Tuga-Zuca prometeu se comportar, mas logo sumiu e o Zuca-Tuga me pediu para ajudá-lo e buscá-lo, com um olhar de pânico no rosto e a me dizer: “esse gajo é louco e esquece que a gente é imigrante. Ele tá na terra dele, mas qualquer coisa que acontecer aqui, quem se dá mal é nós, ‘tás a perceber? Percebe ou não percebe, meu parceiro?”. Esta não foi a única vez que ele fez esse apelo ao evocar a nossa condição imigrante. Zanetti (2024), em seu artigo “Portugal migrante: ativismo e resistência…” destaca esse clima “negativo” para o migrante, apontado não apenas por seus interlocutores no estudo mas também pelo relatório “Discurso de ódio e imigração em  Portugal” de 2021, em que segundo Zanetti (2024, pp. 10-11), indica que:

 

“a representação negativa do ‘Outro’ e a representação positiva do ‘nós’ são usadas como base dos discursos de ódio contra minorias, incluindo imigrantes, que são frequentemente vistos como um fardo para o Estado e uma ameaça à identidade nacional. Além disso, o crescimento da direita radical populista na Europa, incluindo Portugal, também tem sido um fator importante na disseminação de discursos de ódio contra minorias raciais e étnicas”

 

Encontramos o Tuga-Zuca no bar ao lado, durante um pedido de desculpas ao dono do bar pela confusão da semana anterior. Conseguimos puxá-lo de volta à nossa mesa, mas por pouco tempo, pois o gajo esbravejava que iria para a “beira dos Ciganinhos”. A impressão que eu tinha é de que seria uma questão de tempo para que o Tuga-Zuca se envolvesse em alguma confusão. 

 

Todavia, da minha parte, o fim da noite foi um tanto anti-climático, pois após buscar o que seria a minha última caneca de cerveja, não encontrei mais os dois e a minha mesa já havia se reconfigurado, pois sobrou apenas o Charro e três novos amigos, incluindo dois Brasileiros e o Argentino mais Brasileiro que já conheci. Ainda não entendi muito bem o comportamento daqueles bares, cujas mesas vão mudando de disposição apesar das pessoas não se conhecerem. Talvez esta tenha sido uma noite especial, pois mesmo que tenha visto esse fenômeno acontecer outras vezes no mesmo espaço, foram pouquíssimas.

 

Após algumas semanas, encontrei novamente o Zuca-Tuga, que me atualizou do desfecho daquela noite. No fim, o Tuga-Zuca realmente se envolveu em uma confusão, quebrando a mão e não aparecendo mais na obra. Já o Zuca-Tuga acabou apanhando, pois um gajo entendeu que ele teria tentado alguma aproximação para cima de sua namorada, o que levou a uma discussão e posterior justiça com as próprias mãos. Não duvido de que possa ter ocorrido, afinal, o Zuca-Tuga partilhava parcialmente de um comportamento mulherengo tal qual o Tuga-Zuca, embora não tão explícito e impositivo. Entretanto, não deixa de ser irônico que foi apenas o imigrante que arcou com as consequências deste comportamento.

 

Ao refletir sobre aquela noite, ainda me questiono: “então este é o primeiro mundo?”. Não digo que cenas como estas não existam na minha pátria, porém nunca havia presenciado uma misoginia aos uivos ou tamanha inconsequência a nível de atitudes, como aspirar um cume de neve em cima da mesa de um bar. Mas principalmente, nunca havia presenciado um olhar de pânico tão genuíno quanto o do Zuca-Tuga, quando tentava acalmar o seu colega e reforçava “se der ruim, sobra pra nós que é imigrante”.

 

Texto e imagens: Lucas Novais (CECS/Universidade do Minho)

Publicado em 31 de janeiro de 2025

 

Referências

Gomes, M. S. (2013). O imaginário social <Mulher Brasileira> em Portugal: uma análise da construção de saberes, das relações de poder e dos modos de subjetivação. Dados, 56(4), 867-900. https://doi.org/10.1590/S0011-52582013000400005

Zanetti, L. A. (2024). Portugal migrante: ativismo e resistência em tempos de ascensão da extrema-direita. Cadernos De Campo (São Paulo – 1991), 33(1), e220715. https://doi.org/10.11606/issn.2316-9133.v33i1pe220715

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