Arqueologia de guerrilha na orla marítima de Heraklion: Angústia, Ruínas, Detritos e Amálgamas

O gosto residual do Syrah

angústia

angústia gratificante – insondável

Eu rendo-me

Três círios tornam-se quatro

Desapareço no seu esplendor

 

Este microensaio é uma tentativa de revisitar – através de documentos fotográficos informais, esboços poéticos e algumas notas autobiográficas -, numa exploração de campo, uma parte da orla marítima de Heraklion, que teve lugar na manhã de 5 de novembro de 2020. No início da manhã desse dia, a mulher grávida do autor foi transportada para um hospital daquela zona para ser submetida a uma operação muito stressante e muito dolorosa (que acabou por durar cerca de 14 horas), em consequência da morte de um feto de cinco meses no seu ventre, devido a uma anomalia genética. O autor não pôde ficar com ela durante essas horas dramáticas devido às medidas de resposta à pandemia de COVID-19 (que estava ainda no seu auge nessa altura). Como reação a este desastre pessoal bastante devastador, o autor vagueou sozinho pela região mais vasta em redor do hospital durante várias horas, em parte guiado pelo próprio lugar e em parte pela sua necessidade inexorável de afastar sentimentos intensos de agonia, tristeza e pesar – desespero até.

 

deixa que a vida me molde

deixem-me testemunhar o que nunca acontecerá

deixa-me ser a dobra que nunca se desdobrará

 

Este ato improvisado de deriva não é, no entanto, novidade para o autor. De facto, o autor realizou uma extensa investigação prévia em práticas de caminhada/peripatéticas, bem como na exploração da paisagem em vários contextos criativos – ver, por exemplo, (Koutsomichalis 2022a; 2022b). A sua prática baseia-se, geralmente, num vasto leque de campos de estudo empíricos e teóricos, tais como a psicogeografia (Smith 2010), a arqueologia mais do que humana (Pétursdóttir 2012; Pétursdóttir e Olsen 2018), a ecologia negra (Harman 2016), entre outros. Este ensaio fotográfico, alinha-se com a tradição emergente da teoria/metodologia não-representacional e, como tal, não pretende apresentar nem um relato nem um registo do seu esforço à deriva; em vez disso, espera-se que procure colocar em primeiro plano o

“o poder do precognitivo como tecnologia performativa para uma vida adaptativa, como instrumento de sensação, jogo e imaginação, e como força vital que alimenta os excessos e os rituais da vida quotidiana” (Vannini 2015:4)

Mais, através da inclusão de fotografias e esboços poéticos, este ensaio também aspira a demonstrar que tal tecnologia performativa pode tornar-se um meio poderoso para conduzir pesquisas arqueológicas e para colocar as cidades atuais sob escrutínio. Ou seja, um meio poderoso de experimentar e de se degladiar as multitemporalidades que estas últimas implicam e sobre as formas como diferentes espécies de objetos (que muitas vezes têm origem em, ou que evocam, tempos diferentes) passam a coexistir e a inter-relacionar-se entre si no presente.

Assim, o que se segue é uma exposição e uma breve apresentação de alguns dos diferentes tipos de amálgamas urbanos encontrados durante a deriva do autor, com o objetivo de realçar as suas qualidades em termos de textura, estrutura e constituintes. Talvez mais importante (para o autor), este ensaio fotográfico serve também como um registo implícito da tentativa do autor de denunciar certos sentimentos em prol de outros (que lhe são mais convenientes gerir). Neste continuum, é embelezado com a adaptação inglês/português de alguns versos que escreveu naquela particular manhã de 5 de novembro de 2020[1].

O mapa acima delineia, grosso modo, a parte de Heraklion onde ocorreu a deriva. Heraklion é a capital da ilha de Creta, no Sul da Grécia – uma das maiores ilhas do Mar Mediterrâneo com uma história bastante complicada, que remonta a nada menos do que cinco milénios. As fortificações foram construídas durante o período veneziano da cidade, no século XIII d.C., e desde então têm sofrido todo o tipo de danos, reparações e reconstruções. Na área acima representada, as fortificações encontram-se com a avenida costeira dominante, formando com ela um “T” (e as estradas mais pequenas nos lados da primeira). Esta paisagem urbana é predominantemente mista, caracterizada por várias camadas de intervenções arquitetónicas ad hoc bastante caóticas ao lado de – ou sobre – ruínas de um passado distante ou recente. De facto, é bastante típico que blocos de apartamentos de aspeto moderno se situem ao lado de construções em várias fases de degradação e até de um complexo industrial completamente abandonado. Na sua maior parte, a riotomia das subáreas residenciais nesta parte da cidade parece seguir padrões que existiram durante as eras veneziana (séculos XIII-XVII d.C.) ou otomana (séculos XVII-XIX d.C.) e que fazem pouco sentido nos dias de hoje, em que o transporte automóvel e os apartamentos são a norma. Pelo menos nesta área, a cidade desafia as noções de planeamento urbano e parece aderir muitas vezes ao acaso. É de salientar, no entanto, que esta não é, de forma alguma, uma parte de Heraklion que se encontra num gueto, mas sim uma parte moderadamente vibrante que também alberga hospitais, restaurantes, escritórios, serviços públicos, lojas, parques, creches e outros, de modo que as pessoas de outras partes da cidade se deslocam frequentemente a esta zona para trabalhar, para assuntos pessoais ou para lazer.

crepúsculo (madrugada)

salpicos de sal no meu rosto

ondulações em tons de verde desbotado

psicogeografia

transeuntes insuspeitos

tristeza de veludo

 

As intervenções indisciplinadas ao longo do tempo em construções públicas e privadas têm frequentemente um efeito de “manta de retalhos”. Ou seja, são evidentes “manchas” estruturais de diferentes texturas ou substâncias em superfícies e volumes. Estes podem ter ocorrido em qualquer altura, desde alguns dias até vários séculos antes da deriva do autor, e podem ter sido concebidos como soluções temporárias ou permanentes para algum tipo de problema estrutural ou outro. Os remendos expõem de forma sucinta a natureza do território como uma amálgama de diferentes temporalidades que se complementam ou se chocam entre si. Ao fazê-lo, ou resgatam/sustentam padrões de tempos mais antigos ou fazem surgir padrões inteiramente novos que, no entanto, permanecem num diálogo não intencional com os primeiros. Neste continuum, o presente parece procurar projetar-se no passado (e talvez vice-versa). As imagens que se seguem revelam vários desses casos.

De particular interesse é a imagem da muralha veneziana medieval abaixo. Um olhar mais atento revela remendos efetuados em períodos muito diferentes e com o objetivo de reparar danos de uma forma bastante improvisada.

 

uma moldura que serve para tudo:

escantilhões podres, blocos de betão, estruturas medievais,

a ferrugem, os fracassos urbanos, a vastidão do horizonte

reverberações – reflexos sonoros

a perda define-nos a todos

 

Talvez mais do que em qualquer outra parte de Heraklion, nesta parte particular da cidade a matéria à deriva junta-se e mistura-se com a atividade humana e mais do que humana, de modo a estabelecer um contraponto de várias espécies de coisas. As ondas do mar e o vento contribuem para uma massa cada vez maior de detritos que se juntam às coisas produzidas ou redistribuídas em resultado de várias atividades animais (gaivotas, corvos de capuz, pombos, cães vadios, gatos, roedores, insetos, etc.), humanas e até vegetais. As imagens abaixo dão uma ideia rápida das infinitas formas em que as coisas se encontram a viver ao lado de outras coisas, de modo a formar conjuntos que desafiam largamente as classificações formais. Em vez disso, parecem coreografar micromundos únicos, que emergem e se desmoronam na sequência da sobreposição de atividades urbanas, forças naturais, acaso e acidente.

O facto de nos centrarmos nas superfícies revela também uma riqueza inesgotável. As texturas contingentes “registam” organicamente o efeito dos elementos/forças naturais, do clima local e da atividade (mais do que) humana local em diferentes tipos de matéria.

 

já é de madrugada

as gaivotas voam

tudo está no seu lugar

por agora

 

Os efeitos da atividade humana causal quotidiana misturam-se com o ambiente à deriva, o construído, o renovado e o decadente de formas idiossincráticas e muitas vezes poéticas (na opinião subjetiva do próprio autor). As imagens abaixo ilustram essas “manchas mundanas do quotidiano”: a “casa” de um sem-abrigo; um sótão de secagem ferrugento em justaposição com grades de janela ferrugentas; um cenário de “sala de estar” ao ar livre; e duas ocasiões em que recipientes de bebida foram estrategicamente abandonados – e acabaram por se tornar parte de composições de construção de coisas ao acaso – em vez de serem deitados fora num caixote do lixo (ou reciclados).

 

 

crepúsculo (anoitecer)

palmas das mãos com salinidade e antissético

soluço profundo

o mar hoje é feroz

mata

 

[1] Os versos originais gregos foram publicados sob o título “3/4”, como parte do livro de arte do autor “ΡΟΜΠΟΤΑ”, Limassol: Auto-publicação. 2022. Ver https://marinoskoutsomichalis.com/projects/robota

Texto e imagens: Marinos Koutsomichalis*

Publicado a 22/06/2023

*Marinos Koutsomichalis é um artista, académico e tecnólogo criativo. Interessa-se, de um modo geral pela materialidade dos sistemas auto-geradores, objetos (pós-)digitais, som, imagem, dados, circuitos eletrónicos, perceção, individualidade, paisagens/ambientes e os media/tecnologias em que nos apoiamos para mediar, sondar, interagir ou de outra forma nos envolvermos com os primeiros.

 

Referências

  • Harman, G. (2016). Living Earth: Field Notes from the Dark Ecology Project 2014-2016. Amsterdam, the Netherlands: Sonic Acts
  • Koutsomichalis, M. (2022a). Exploring North Nordic Landscapes in a ‘Hyper-constructive’ RUUKU: Studies in Artistic Research 18.
  • Koutsomichalis, M. (2022b). Tactics against antiquity: the contemporary ancient Messene Journal of Contemporary Archaelogy 8(2): 274–298.
  • Pétursdóttir, Þ. (2012). “Small things forgotten now included, or what else do things deserve?”. International journal of historical archaeology 16(3):577-603.
  • Pétursdóttir, Þ and B. Olsen. (2018). “Theory adrift: The matter of archaeological theorizing”. Journal of social archaeology 18(1):97-117.
  • Smith, P. 2010. “The Contemporary Derive: A Partial Review of Issues Concerning the Contemporary Practice of Psychogeography.” Cultural Geographies 17(1):103–122.
  • Vannini, P. (2015). “Non-representational research methodologies: An introduction”. In Vannini, P. (ed.) Non-Representational Methodologies (pp. 1-18). London: Routledge.

 

 

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