Aquilombando no Quilombo Hair

Quilombo é uma história. Essa palavra tem uma história. Também tem uma tipologia de acordo com a região e de acordo com a época, o tempo. Sua relação com o seu território. A Terra é o meu quilombo. Meu espaço é meu quilombo. Onde eu estou, eu estou. Quando eu estou, eu sou.

(Nascimento, como citado por Ratts, 2006, p. 59)

 

Precisava cortar meu cabelo, pois já fazia uns bons 7 meses que não o cortava e estava um tanto disforme. Diante da correria em que me encontrava para vir à Portugal, foi minha esposa V quem agendou para mim, após procurar alguns cabeleireiros afros e que, portanto, conseguiriam “tratá-lo melhor” pois teriam mais “conhecimentos de causa” ao cortar cabelos de pessoas negras, independentemente do tamanho de seus cachos (ou não-cachos). 

 

No que buscava profissionais e via algumas avaliações, V ficou assustada e em dúvida de se poderia ir junto a mim, pois em um local específico (que já não me recordo) citavam “preconceitos contra brancos”, com relatos de clientes brancos que se sentiram discriminados no local em questão. Tranquilizei-a dizendo que não sabemos o que pode ter ocorrido, mas que este tipo de situação é um tanto incomum. No fim, V acabou escolhendo o Quilombo Hair de Jeff Samambaia, que tinha excelentes avaliações e cujo perfil no Instagram demonstrava um ótimo trabalho, além de ser bastante popular.

 

O Quilombo Hair fica localizado no bairro do Bixiga, bairro que originalmente era populado por negros e imigrantes europeus recém-chegados, principalmente italianos, que dão fama ao bairro enquanto um bairro tradicionalmente italiano na cidade de São Paulo – apesar de sua história também ser intrinsecamente ligada à população negra (Gonçalves, 2023; Nascimento, 2016). Nos arredores do Quilombo Hair, podemos ver sobrados tipicamente Brasileiros, com no máximo 2 andares e cujos portões levam diretamente à calçada, além de poucos prédios, numa região que denota ainda não ter passado um processo muito grande de gentrificação, apesar de contar com uma presença um pouco mais forte de imigrantes Haitianos e Africanos, assim como em outros bairros do centro da cidade de São Paulo, situação que está numa crescente desde meados de 2010 (Fernandes, 2015; Pachi, 2020; Villen, 2015, p. 128).

 

O Quilombo Hair se apresenta enquanto uma pequena porta marrom que dá para um café. O salão em si está subindo algumas escadas à direita, após sermos saudados por inúmeros adesivos/autocolantes, em sua maioria de cunho políticos, elicitando mensagens de suporte ao antifascismo, antirracismo, anti-homofobia, etc.

 

Figuras 1 a 3. Entrada do Quilombo Hair e adesivos/autocolantes em seu ambiente
Créditos: o autor (2024)

 

Após subirmos, sou recepcionado por Jeff e o restante das garotas da equipe. Aceito um gole d’água e começo a notar o espaço, enquanto tocava “Mama África” de Chico César. Dentre os clientes e staff, podemos ver pessoas de inúmeras tonalidades, desde retintos à pessoas brancas cacheadas que, invertendo a lógica brasileira, são uma minoria étnica no recinto. Noto que tal fato já tranquilizou minha esposa, que ainda estava um pouquinho receosa após o outro review que havia lido. Mas era de se esperar, afinal, o Quilombo Hair é um quilombo, o que indica um lugar de comunalidade e respeito, não à toa que originalmente, no Brasil, também vinham a ser populados por pessoas brancas (embora minoritariamente), visto que abraçava todos os marginalizados pela sociedade brasileira da época (Reis, 1996), como explicitado por Munanga (1996, p. 63): 

 

“Pelo conteúdo, o quilombo brasileiro é,sem dúvida, uma cópia do quilombo africano reconstruído pelos escravizados para se opor a uma estrutura escravocrata, pela implantação de uma outra estrutura política na qual se encontram todos os oprimidos […] Imitando o modelo africano, eles transformaram esses territórios em espécie de campos de iniciação à resistência, campos esses abertos a todos os oprimidos da sociedade (negros, índios e brancos), prefigurando um modelo de democracia plurirracial que o Brasil ainda está a buscar […] Com efeito, os escravizados africanos e seus descendentes nunca ficaram presos aos modelos ideológicos excludentes. Suas práticas e estratégias desenvolveram-se dentro do modelo transcultural, com o objetivo de formar identidades pessoais ricas e estáveis que não podiam estruturar-se unicamente dentro dos limites de sua cultura […] Visavam a formação de identidades abertas, produzidas pela comunicação incessante com o outro, e não de identidades fechadas, geradas por barricadas culturais que excluem o outro”

 

Jeff me chama e pergunta o que desejo fazer hoje, para o que respondo “penso em algo meio Michael Jackson em Don’t Stop ‘Til You Get Enough“. Jeff achou uma ótima opção, mas relutava em cortar meu cabelo, apelando que “é um cabelo muito bom e ‘da hora’ pra eu cortar esse tanto“, levando a risadas de vários presentes no salão. Explico-lhe que preciso renovar e garantir que ficará ótimo pois vou viajar e demorarei a cortar novamente, o que parece finalmente convencê-lo e daí começamos.

 

Enquanto cortava meu cabelo, começamos a conversar (e nos intrometer/envolver na conversa do corte ao lado). Discutia-se sobre sotaques cariocas x paulistas, principalmente no ato de se impor aos outros. Para nós, paulistas no salão, o dizer carioca é muito mais impositivo e até agressivo, o que foi argumentado pela cabeleireira (carioca) ao lado que se justifica pois funciona enquanto um “mecanismo de sobrevivência”, já que o Rio de Janeiro exige esse tipo de imposição. Segundo ela, o dia-a-dia do carioca é repleto de pessoas tentando ganhar vantagem em cima do próximo. Sendo assim, é necessário ter um “qual foi, merrrmão? Que que é, hein?” na ponta da língua. Em minha réplica, eu noto que São Paulo também exige esse tipo de malícia. Entretanto, nossas discussões “paulistas” se elevam gradualmente, enquanto que as discussões cariocas já começam pelo final da discussão, ou seja, quando todos já estão a gritar uns com os outros.

 

Esta breve interação levou a uma grata conversa entre as diferenças do cotidiano de ambas as cidades, em que Jeff me trouxe um pouco mais de sua história de vida. Filho de mineiros, Jeff viveu a maior parte de sua vida no Rio de Janeiro, mas atualmente se sente paulistano e “não volta para o Rio de Janeiro por nada”, citando que apesar de também ser violenta, a cidade de São Paulo não tem comparação com o Rio de Janeiro. Brinco com Jeff sobre um ditado que inventei para comparar as duas cidades: “para viver em São Paulo, é necessário ser gatuno. Para viver no Rio de Janeiro, é necessário ser o próprio gato para se ter 7 vidas”, o que trouxe risadas e uma enfática concordância “pode crê, é isso mesmo”. Ainda nesta discussão entre a vida no Rio de Janeiro e a vida em São Paulo, Jeff me confessa de que tinha uma ideia estereotipada do paulistano, isto é, ele acreditava que todos em São Paulo agiam como o cantor Mano Brown dos Racionais MC’s, ou então enquanto o personagem “Boça” do programa humorístico “Hermes e Renato”. Atualmente, Jeff nota que a cidade de São Paulo é extremamente diversa, pois “tem tudo quanto é tipo de gente, de tudo quanto é lugar”.

 

Uma vez realizado o corte inicial, chegou a hora da lavagem, o que foi uma experiência única na vida deste (ainda) jovem negro paulistano. Pela primeira vez em minha vida, foram desembaraçados TODOS os incontáveis nós de meus cachos, em um processo que levou – acredito eu – cerca de 30 minutos. Foi um procedimento tão aconchegante e cuidadoso que, sinceramente, me senti a flutuar uma vez que foi concluído. Após a lavagem, desembaraçamento e hidratação, chegou a hora então de ir ao famoso “cabeção”.

 

O chamado “cabeção” é um secador de cabelo que fica aos fundos do salão, em uma varanda bastante arborizada, na qual dividi o espaço de algumas pausas de trabalho junto às funcionárias do salão. O tempo no “cabeção” continuou a me trazer uma sensação de conforto que sentia desde que entrei no salão.

 

Figura 4. “Cabeção” e Varanda do Quilombo Hair
Créditos: o autor (2024)

 

Ao retornar, notei outras pessoas a receberem seus cortes de cabelo, em diferentes tonalidades de negritude Afro-Brasileira, tanto mais claros quanto mais retintos do que este que vos escreve. Sentei-me novamente na cadeira de Jeff Samambaia e pude notar um pouco melhor os seus utensílios, reparando especialmente em uma bandana/turbante, adereço bastante ligado à cultura Afro e que nunca tinha visto em salões “comuns”.

 

Conversa vai, conversa vem, meu corte então foi concluído. É neste momento que compartilho que estou a fazer este corte pois vou embarcar na “aventura” do meu doutoramento em Portugal. Sendo assim, infelizmente não devo retornar tão cedo. Jeff me parabeniza e me convida a ir ao salão de seu primo, que está na Terrinha e me receberia com grande prazer, o que também foi uma surpresa.

 

Já saindo do Quilombo Hair, dou uma última passada de olhos no lugar, já com o coração um tanto quanto pesado de saudade. Todavia, ainda não havia reparado melhor no café abaixo, achando deveras interessante uma placa a esclarecer: “nossa equipe é formada por mulheres trans! Não esqueça! O pronome é sempre ‘ela’!”, somada a diferentes adereços decorativos (e políticos!), tais como um quadro de uma guilhotina, a bandeira do Movimento Sem Terra e um discurso de Fidel Castro na ECO 92, que ocorreu no Rio de Janeiro, alertando que “os seres humanos correm perigo de sobrevivência”.

 

 

Figuras 5 a 7. Decoração da entrada do Quilombo Hair
Créditos: o autor (2024)

 

Em suma, devo dizer que o ato de visitar um quilombo, enquanto uma pessoa negra no Brasil, sempre carrega uma experiência de reconexão com esse aspecto tão fundamental de nossa identidade cultural Afro-Brasileira – a nossa cor/raça/etnia. É uma emoção e uma sensação de pertencimento quase inexplicável. Apesar de inexplicável, ela é notória, pois logo a minha esposa me perguntou: “ter vindo aqui não te traz um certo reconhecimento, Lucas? Aqui todo mundo achou o seu cabelo lindo e deve ser bom estar junto de pessoas que entendem o que você passa, na pele, todos os dias, né?”. Eu nem precisei falar mais nada, pois tudo já havia sido dito, sendo assim, concordei com um “é exatamente isso” e me lembrei das palavras de Nilma Lino Gomes (2003, p. 173) em seu estudo sobre o efeito de salões de cabelos étnicos nas pessoas negras:

 

A importância […] sobretudo do cabelo, na maneira como o negro se vê e é visto pelo outro, até mesmo para aquele que consegue algum tipo de ascensão social, está presente nos diversos espaços e relações nos quais os negros se socializam e se educam: a família, as amizades, as relações afetivo-sexuais, o trabalho e a escola. Para esse sujeito, o cabelo carrega uma forte marca identitária e, em algumas situações, é visto como marca de inferioridade […] Porém, existem outros espaços em que o cabelo é visto numa perspectiva de revalorização. São eles: os contextos familiares em que se preserva a memória ancestral africana, alguns espaços da militância política, os salões étnicos, entre outros. Essa revalorização extrapola o indivíduo e atinge o grupo étnico/racial a que pertence. Ao atingi-lo, acaba remetendo, às vezes de forma consciente e outras não, a uma ancestralidade africana recriada no Brasil.

 

Escrito por Lucas Novais (CECS/Universidade do Minho)

Publicado em 25 de outubro de 2024

 

Referências

 

Fernandes, D. (2015). O Brasil e a migração internacional no século XXI – Notas introdutórias. In E. J. P. d. Prado & R. Coelho (Eds.), Migrações e trabalho (pp. 19-41). Ministério Público do Trabalho. https://www.academia.edu/download/53147871/Migracoes_e_Trabalho_MPT.pdf

 

Gomes, N. L. (2003, jan./jun.). Educação, identidade negra e formação de professores/as: um olhar sobre o corpo negro e o cabelo crespo. Educação e Pesquisa, 29(1), 167-182. https://www.scielo.br/j/ep/a/sGzxY8WTnyQQQbwjG5nSQpK/abstract/?lang=pt

 

Gonçalves, J. (2023). “Nada sobre nós, sem nós!”: memórias, identificações e busca por reparação histórica na luta pela preservação do sítio arqueológico do Quilombo do Saracura (São Paulo, SP). Anos 90, 30, e2023305. https://doi.org/10.22456/1983-201X.129872

 

Munanga, K. (1996). Origem e histórico do quilombo na África. Revista USP, 1(28), 56-63. https://www.revistas.usp.br/revusp/article/view/28364/30222

 

Nascimento, L. A. C. (2016, jan/jun). No Bixiga nem tudo é italiano: relatos de vivência sobre um bairro da região central em São Paulo. Pensando Áfricas e suas diásporas, 1(1), 104-118. https://periodicos.ufop.br/pensandoafricas/article/download/1361/1099

 

Pachi, P. (2020). A imigração haitiana e as mudanças no espaço urbano da cidade de São Paulo. Ideias, 11, e020005. DOI: 10.20396/ideias.v11i0.8658449

 

Ratts, A. (2006). Eu sou atlântica: sobre a trajetória de vida de Beatriz Nascimento. Instituto Kuanza.

 

Reis, J. J. (1996). Quilombos e revoltas escravas no Brasil. Revista USP, 1(28), 14-39.
https://www.revistas.usp.br/revusp/article/view/28362/30220

 

Villen, P. (2015). Imigração e racismo na modernização dependente do mercado de trabalho. Lutas Sociais, 19(34), 126-142. https://doi.org/10.23925/ls.v19i34.25762

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