Amo-te, Cristina
Como tatuagens que se colam à pele da cidade, as mensagens inscritas nos postes, paredes, caixotes do lixo ou da eletricidade na Baixa do Porto instalam-se na urbe, reclamando um espaço próprio e concorrendo com a hiperestimulação comunicativa das ruas. Colocamo-nos na posição de Bakhtin (1986), transpondo o conceito de dialogismo para estas imagens-ícones-textos que também se espalham por muros, tampas e janelas.
Procuramos, em três eixos da cidade do Porto, as formas de comunicação mais improváveis, as que se apropriam do espaço da cidade (dos seus muros, das suas ruínas, dos postes, do inverso, enfim, do melhor spot publicitário) para reclamar o seu direito a existir nela. Percorrendo as freguesias do Bonfim (Rua do Heroísmo, S. Vítor, Campo 24 de Agosto), Cedofeita (Rua de Cedofeita, Rua do Breyner, Rua do Rosário), Paranhos (Rua da Constituição, Marquês, Faria Guimarães), treinamos o olhar para o pequeno caos que se mistura com o quotidiano. Restos de autocolantes e cartazes, graffiti, stencil, azulejos. Registos visuais a maior parte das vezes anónimos e pseudonímicos. Tentamos questionar que enunciados são estes, a quem se dirigem e que vozes representam (Bakhtin, 1986). Será, como afirma Foucault, que “um texto anónimo que se lê na rua em uma parede terá um redator, não terá um autor” (1970/2009, p. 274)? O que é isso da autoria e o que ela importa a quem passa distraidamente pela centésima vez numa rua em constante mutação comunicacional?
Seguindo as palavras de Moen (interpretando Bakhtin), “de acordo com esta forte ênfase no diálogo, uma voz nunca poderá existir isoladamente. Ela nunca existe no vácuo e nunca é neutra. A voz que produz uma declaração dirige-se sempre a alguém” (2008, p. 294). Ordenamos as imagens que se sucedem em catadupa pelas diferentes ruas da cidade, procurando tecer sentidos no aparente improviso do seu gesto fundador. Com o bisturi do olhar perscrutamos os diálogos que se cruzam, como numa teia, em que o flâneur é, afinal, a aranha.
Diálogo 1 – Das mensagens com o lugar que habitam
“Amo-te, Cristina” aparece em dezenas de espaços da cidade. Um pequeno autocolante branco, com letras pretas, sem assinatura, nem outros artifícios visuais. Não só a mensagem atrai o olhar (uma declaração de amor), como a sedução da mesma surge do caráter repetitivo. A cada passo, “Amo-te, Cristina” ataca subliminarmente o cérebro, dialogando com o transeunte, em diferentes lugares do Porto. Na correria do quotidiano, quase não temos tempo para refletir sobre este autocolante que, contudo, passamos a associar a um quelho, a uma esquina, a uma sujidade qualquer. Como o stencil “Saudades 500 mg”, que pontua portas e muros, fornecendo uma mensagem entre o melancólico e o esperançoso.
Diálogo 2 – Das mensagens com elas próprias
A outra forma de diálogo que queremos aqui assinalar é a das imagens-texto consigo próprias ou com outras na cidade. “Amo-te, Cristina”, por exemplo, é tão predominante, que suscitou uma resposta, num pequeno azulejo, com a inscrição: “Eu também te amo Tina”. Por vezes, cada mensagem é uma espécie de sucedâneo dela própria, funcionando como interpelações variadas, múltiplos de uma mesma ideia. Assim: “H225JE a vida faz-te bem”, “Hoje qual é o teu super poder?”, “Hoje são [dias?] de loucura”, “H21JE é uma rave sozinha em casa”. Ou “Je suis partout”, que se intercala com a variante/resposta “j’existe”.
Diálogo 3 – Das mensagens com o discurso institucional
Cravadas no avesso da cidade, as imagens-texto incorporam atos de resistência pela arte. Mesmo quando as suas mensagens são, na forma, inocentes. Não esqueçamos, contudo, as condições da sua existência e o facto destas mensagens (a maioria delas anónimas ou secundárias no todo informacional da cidade) não terem como objetivo representar nada, mas, acima de tudo, provocar a infâmia (Agamben, 2005). Quer a sua condição física marginal, quer o formato e conteúdo das mensagens veiculadas, tudo convoca a disrupção. De resto, estas imagens disputam o espaço e conteúdo ideológico com movimentos ativistas pelo direito à habitação e à cidade. Todas elas são um dedo apontado ao discurso dominante, seja uma entidade abstrata (os donos do poder e do dinheiro), seja o Município, na figura do Presidente da Câmara, Rui Moreira. São do “Filho Bastardo”, por exemplo, o autocolante de Rui Moreira com coroa de rei e nariz de palhaço e a placa toponímica simulada “Rua dos Legítimos Negócios de Família”. Outras mensagens são menos sofisticadas, mas igualmente ácidas: “Tanta casa sem gente, ocupa” ou “Tourist, go home”.
Que vozes são estas?
Mais diretas ao alvo ou subtis na polissemia dos seus significados, que vozes escondem estas mensagens? Mesmo que estas imagens sejam resultado de um redator (e não de um autor), não estarão sujeitas às mesmas condições de vigilância, repressão ou punição de todos os demais discursos que povoam uma cidade? A sua própria existência (até o efémero da sua condição original) não são, desde logo, um indício de uma autoria que se faz ausente para aumentar o impacto da universalidade do seu enunciado? Voltemos ao “Amo-te, Cristina”. Será uma ridícula declaração de amor sem passado nem futuro? Ou a expressão de amor pela cidade (uma mensagem de otimismo perante a desumanização) de uma vulgar Cristina? Afinal, amo-te é a frase, Cristina a assinatura. Embora, em passo apressado, se pareça dirigir a uma tal Cristina. Procuremos “Saudade: 500 mg”: remete para o artista Add Fuel. Quem é “Filho Bastardo?”: artista gráfico. O que representam estas pessoas individualmente (de onde vêm e o que as move) é essencial para compreender a obra? Chamamos obra a estes grafismos? “O que importa quem fala?” (Motta, citando Foucault, 1970/2009, p. XX). Regressemos ao dialogismo. Nenhuma destas mensagens se cria sem o intuito de se completarem pelos significados que outros lhes atribuem. Não é que transmitam fielmente uma ideia a alguém. Antes, ajudam a construir as mil facetas simbólicas da cidade.
Texto e imagens: Teresa Lima
Publicado a 10/02/2023
Referências
Agamben, G. (2007). Profanações (S. J. Assmann, Trad.). Boitempo.
Bakhtin, M. M. (1986). Speech genres and other late essays (V. W. McGee, Trans.). University of Texas Press.
Foucault, M. (1970/2009). Ditos & escritos III (I. A. D. Barbosa, Trad.). Forense Universitária.
Foucault, M. (1997/1970). A ordem do discurso: aula inaugural no Collège de France, pronunciada em 2 de Dezembro de 1970. Relógio d’Água.
Moen, T. (2008). Reflections on the narrative research approach. In B. Harrisson (Ed.), Life story research (pp. 291-308). Sage.
Motta, M.B. da (2009). Apresentação. In Ditos & escritos III (I. A. D. Barbosa, Trad.). (pp. V-XLVII). Forense Universitária.
LOCALIZAÇÃO
LOCAL: Porto
LATITUDE: 41.1612067
LONGITUDE: -8.604801199999999