A vertigem da borboleta

Registo de sensações no Parque Central da Asprela, no Porto

 

No parque, a borboleta precipitou-se no abismo. Este foi apenas um acontecimento entre outros, que presenciei no bosque espraiado no meio de templos do saber científico. A passagem que, diariamente, faço na hora do almoço, no Parque Central da Asprela, no Porto, é um abraço mágico.

O parque era um baldio incaracterístico, que valorizou a paisagem do lugar, em maio de 2022. As suas revelações secretas estão para lá das evidências cientificamente elaboradas. O primeiro dos sucedidos foi o ebó. Na pressa do caminho, lá estavam dois côcos frescos e uma tigela de arroz, debaixo de um carvalho tenro. Foi um convite do parque, que me passou a acolher, desde então. Durante dias a fio, fotografei a oferenda e agradecia a sua presença pagã. Ameaçado pela chuva, vento, frio, máquinas de aparar relva, o ebó foi resistindo. De oferta fresca virou ruína, meio comido pelos animais, já escuro de fungos. Até que desapareceu. Guardaria desejos de amor? Puro agradecimento aos orixás? Encruzilhada cifrada. Aceitei intimamente a sua interpelação e fiz do ebó a minha retribuição. Não fora mais, ao parque que se ia transmutando silenciosamente a cada dia.

 

Figura 1. Oferenda

 

Figura 2. Vertigem da borboleta

 

Ao longo do tempo, o parque foi destapando o seu temperamento. Comecei por atravessá-lo nos inícios do Outono, quando o ar ainda é cálido. Nas primeiras chuvas, mostrou que o bucolismo é superficial. Grandes galhos tombados. Assim desalinhado, não perdeu a dignidade, antes a reforçou. E, no entretanto, passei a levantar a cabeça para as copas balançantes. Conhecendo-o, até certo ponto, pelas suas margens, contornando pelo lado da rua Alfredo Allen (em direção ao Campus S. João) e regressando pela Rua Júlio Amaral de Carvalho, junto ao IPATIMUP, entrei no miolo, um dia. O parque apresentava-se completamente indiferente, compenetrado nos troncos velhos tombados, no regato e na tagarelice da pausa do almoço. O seu descaso descentrou-me.

 

Figuras 3 a 6. O parque

Referi sucedidos. Seguem eles. Escondidos pelas árvores, namorados namoram. Um homem adensa-se nas entranhas do parque, calcando folhas secas e escondendo-se por baixo da ponte. Veio-me um temor de tempos idos. O quotidiano do parque não lhe rouba a poesia. Mesmo quando é arranjado (podas, remoção de lixo, folhas e lama) a sua irreverência sobrepõe-se.

Desvio o olhar das copas para o chão. De lá surge o aroma de hortelã silvestre. Poças de água e buracos de toupeira. Nunca senti o parque o mesmo. Há um regato e pequenas pontes, pedras a marcar caminho. Estende-se todo em nuances de verde ao sol e ganha textura na humidade.

Em dia de chuva torrencial, o ribeiro engrossou. Ao descer as escadas de acesso ao parque, nem queria acreditar que era dele o barulho feroz, avião a levantar voo. As águas, jorrando de cima, brotando do chão, expelindo-se nas folhas, tomavam conta de tudo. Com as referências habituais engolidas pelo dilúvio, a transmutação do parque tornou-o esplendorosamente belo e solitário.

 

Figuras 7 e 8. Dilúvio

 

Rebeldia à parte, nos dias serenos o parque é pisado por dezenas de humanos. É pretexto para corrida ou para caminhada. A sua imperfeição é salvífica, no meio de tantas certezas e descobertas, dor e vidas promissoras.

 

Teresa Lima (CECS/Universidade do Minho)

Publicado a 6 de março de 2025

LOCALIZAÇÃO

LOCAL: Porto

LATITUDE: 41.1771986

LONGITUDE: -8.601865799999999