A Rua de S. Marcos é a minha casa

Habitarás muitas casas! Na infância? Sobretudo na infância. E noutra idade, também. Lugares que desafiarão a tua memória no dia de os visitares. Se algum dia os visitares (…) Vá! Conta-me; não me deixes nesta angústia de julgar que só eu gozei as casas que habitei. Mas não mas descrevas por fora que, por fora, qualquer um as entende. (Graça Dias, 1991, p. 10)

Ali passava demoradas tardes na sua infância, levado pela mão do pai, assíduo frequentador de uma das três tascas que então abrigavam, pontilhando de malgas de vinho e inesquecíveis iguarias, as conversas arrastadas entre amigos e velhos conhecidos. A Favorita é a única que restou desses tempos, agora convertida em tasca-pastelaria onde a horas certas se aguardam os rissóis ou os bolinhos de bacalhau ainda quentes. Bertinho, pode dizer-se, além da rua, não tem outra moradia. Ali vai conquistando o seu ganha-pão e vencendo a jornada de cada dia, fazendo todo o tipo de recados. Desde pequenos biscates no Pomar da Mariazinha, agora gerido pelo Sr. João e D. Lena (com quem chegou a andar na escola), ou na loja de bicicletas, às idas aos correios para levar correspondência ou levantar encomendas, Bertinho mostra-se sempre disposto a dar uma mão aos muitos afazeres que animam o comércio da rua. D. C., gerente da LibKids, conta que Bertinho é muitas vezes quem lhe vale na altura em que é preciso fazer depósitos na Caixa: “Confio nele, nem que seja para lhe entregar mais de setecentos euros. Traz-me sempre o recibo e assim escuso de ficar sem a hora de almoço, que na certa passaria nas intermináveis filas de espera”.

Bertinho encontra na Rua de São Marcos o seu abrigo, o ninho das suas memórias. É ali que o conhecem pelo nome, é ali que começa e acaba o dia, cirandando para cima e para baixo, cumprimentando este e aquele, ora aparecendo, ora escapulindo à vista. No sentido antropológico mais profundo, poderá dizer-se que a rua é a sua casa. As palavras de Bachelard são, neste sentido, particularmente oportunas:

“todo espaço verdadeiramente habitado traz a essência da noção de casa (…) [o ser abrigado] Vive a casa em sua realidade e em sua virtualidade, através do pensamento e dos sonhos” (Bachelard, 1993, p. 200)

Nas tardes passadas na esplanada, acompanhado de uma cerveja e de dois dedos de conversa, Bertinho realiza os mais improváveis desejos, desfrutando de cada dia com um vagar e uma aparente tranquilidade que lhe são muito próprios. A sua condição de semi-sem-abrigo é desmentida pela surpreendente assertividade com que chega e abala dando a impressão de cega obediência a uma meticulosa rotina afeita a um dado neg-otium, sincronizada com o acordar da azáfama da rua. Observando o vaivém que acorda e adormece a Rua de S. Marcos, podemos viajar até Berlim, Sinfonia de uma Capital, de Ruttmann, onde se visionam algumas cenas investidas em mostrar a alvorada da cidade, por volta de 1927, o contraste entre os vazios e os cheios das avenidas, a melancólica alternância entre a noite e o dia.

Bertinho enche-se de saudades quando recorda as gentes e os movimentos na rua de outros tempos. “As pessoas eram outras, nessa época atravessavam a rua, todos os dias, pessoas de todo o tipo, sobretudo vindas do campo e arredores, a caminho do Hospital de S. Marcos. Havia muita animação. Eu cheguei, nessa altura, a pedir esmola à porta da igreja…” (Excerto de entrevista realizada na Favorita, no dia 14 de março de 2020). “O negócio da fruta ressentiu-se muito”, haviam-nos dito no Pomar da Mariazinha, “…naquele tempo comprava-se muito bananas para levar aos doentes nas visitas ao Hospital. Tudo isso acabou”. Na memória coletiva dos habitantes e comerciantes mais antigos da rua, em conversas cruzadas e de passagem, ainda se fala do antigo Bananeiro, exclusivamente dedicado à venda de bananas. “Parece que há quem tenha ainda o retrato em fotografia”, dizem. Memórias mais recuadas recordam as antigas leiteiras, que ao nascer do dia distribuíam as bilhas na cidade, pelas portas das casas. Proust, na obra Em Busca do Tempo Perdido, arriscaria dizer, poderia à época ter descoberto inspiração na Rua de S. Marcos, tendo em vista a passagem seguinte: “Enquanto nessa escada pestilenta e desejada da antiga costureira, como não havia outra de serviço, se via à noite diante de cada porta uma caixa de leite vazia e suja preparada em cima do capacho, na escadaria magnífica e desdenhada que Swann subia naquele momento, de um lado e do outro, a alturas diferentes, em frente de cada uma das reentrâncias abertas na parede…” (Proust, 2003, p. 340).

A casa de pianos, o estofador, o sapateiro, os entalhadores, a oficina automóvel, a latoaria, as cesteiras, a gare central de carreiras do Minho com passagem para a atual Avenida da Liberdade, a refinaria de açucar que inebriava os sentidos de quem por ali circulava…encontrava-se de tudo um pouco, em alturas em que a rua ainda tinha trânsito automóvel e era uma das mais bem servidas de comércio e serviços de todo o feitio. O Sr. Fernando, empregado na sapataria (de que agora é proprietário) desde os seus doze anos de idade, poderia desenhar ao mais ínfimo detalhe cada porta, cada fachada, cada letreiro, a paisagem enfim de outros tempos, recordando de caminho os nomes das famílias que então habitavam por cima, tal como assim ditavam os costumes: “Era mais diversa, mais rica, esta rua. Quem viesse à cidade aqui se servia de tudo…” (Entrevista com o Sr. Fernando em 22 de março de 2019).

Por entre estas e tantas outras recordações, íntimas umas, partilhadas outras (Candau, 2013), passeia-se Bertinho, mantendo-se no limiar do antes-depois de uma rua que se duplica em muitas ruas, aquilo afinal que o motiva a deambular sem destino certo, já que com a certeza de saber onde retornar. E o ponto do eterno recomeço é pontuado de alegrias e amarguras, de pequenas histórias que se mostram e outras que se escondem “onde jamais ecoem, calando-se de vez”: “Houve uma época em que, da rua, pelas janelas sempre abertas em tempo quente, chegavam rumores de escândalos e gritos e choros e insultos. – É uma rua com muita vida!, poder-se-á ouvir dizer…” (Graça Dias, 1991, p. 57).

É de um passado-presente que se reveste a conversa que a Passeio entaramelou com Bertinho no passado dia 14 de março (e que aqui reproduzimos em áudio), a poucos dias do encerramento das escolas, do comércio da rua, dos cafés…Reencontramo-lo mais tarde, já com a rua embrenhada num fantasmático silêncio, descendo-a em jeito de quem segue apressado rumo a um destino desconhecido, mas preciso. Na expressão dos movimentos reconhecemos o ritmo habitual, mas os olhos, mais arregalados que nunca, não deixam de denunciar uma inquietação acrescida (apetrechado de uma máscara cirúrgica, acenou de longe, abrandando ligeiramente o passo para perguntar “Está tudo bem? Não a tenho visto… cumprimentos a todos lá em casa!”).

 

Referências

Bachelard, G. (1993). A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes.

Candau, J. (2013). Antropologia da memória. Lisboa: Instituto Piaget.

Graça Dias, D. (1991). As casas. Mirandela: João Azevedo Editor.

Proust, M. (2003). Em busca do tempo perdido Volume I. Do lado de Swan. Lisboa: Relógio D’Água (Tradução de Pedro Tamen)

Ruttmann, W. (Realizador) (1927). Berlim, Sinfonia de uma capital [Filme].Alemanha.

 

Braga, 13 de março de 2020

Texto de Helena Pires

Esquisso de P. T. S.

 

Entrevista com Bertinho:

LOCALIZAÇÃO

LOCAL: Braga

LATITUDE: 41.54544860000001

LONGITUDE: -8.426506999999999