A pessoa que a placa não revela
Jeremias Neves é um nome de uma placa toponímica em Gondomar, Área Metropolitana do Porto. Neste dia em que me detive em frente à placa e a decidi registar, uma catadupa de memórias borbulhou como água a ferver num tacho. Era um dia de verão outonal e isso é capaz de ter ajudado.
Jeremias Gaudêncio das Neves mal consta do algoritmo do Google e mesmo esta sinalética urbana é enganadora, na sua heteronomia. O Jeremias que dá nome à rua é o pai do que eu conheci e a quem pedi para me contar a sua história de vida, em tempos. A rua é quase um quelho, que por acaso percorri muito na infância, a caminho da escola. É tão insignificante, que dá espaço a uma beleza equivocada. Desemboca num tanque (que não lhe pertence), onde parávamos à vinda da escola. Uma criançada penosamente vestida (nos anos 80, pelo menos nos subúrbios, o normal eram as calças de fazenda a picar a pele e os suspensórios), encharcando-se no lavadouro ou derretendo sandálias no alcatrão mole da rua, no verão, ou comendo uvas americanas pelo caminho, no tempo delas, ou apanhando flores ou atirando pedras. Suponho que a rua (que era um quelho mais quelho do que hoje, ao ponto de não ter nome) só tem simbolismo porque, para mim, de espaço, se transformou num lugar. Bachelard (1996) e Tuan (1977) explicam estes fenómenos. Hoje, a rua é uma mistura de infância com a minha versão da história de vida de Jeremias Neves filho.
De modo que, enquanto percorro esta rua, que fixo em imagens, deixo-me guiar para o cemitério, onde Jeremias jaz. Acompanham os meus passos a criança que eu fui, pisando estas ervas e estas escadas com a minha avó, a caminho do cemitério, ao sábado à tarde. Reflito até que ponto as memórias estão impregnadas dos paralelepípedos da estrada, do cheiro e temperatura da cidade. Até porque a barraca das farturas já lá está, no meio do percurso, e é quase certo que, na vinda do cemitério, nos inícios de outubro, o regresso a casa se faça com uma saquinha de meia dúzia delas, para celebrar a romaria anual. Nisto, chego ainda a tempo de apanhar o cemitério aberto. Como homem de bastidores que foi, o túmulo de Jeremias é uma caixa hermética, onde nenhuma lembrança é visível. Penso na hierarquização destes lugares, nas suas distinções sociais, na devoção que ainda lhes prestam os vivos, verdadeiros subsistemas culturais no macro sistema que habitamos.
A placa que está na rua foi pedida por Jeremias filho em homenagem ao pai e terá sido uma das suas prioridades antes de morrer. Não cedo à tentação de me encaminhar para a casa que o habitou, ainda com o impecável carro à porta. Jeremias Neves odiava a exposição e posso não conseguir impedir-me de fotografar a casa. “Quando eu morrer, não vais encontrar nenhum registo meu para contar a história”, disse-me. Não encontrei, mas também não procurei como devia. Talvez que o essencial nem esteja nestes documentos probatórios, que servem para compor a veracidade de uma narrativa. Divirjo apenas para me compreender. Na primeira vez que Jeremias Neves me contou a sua história, os documentos eram a minha profissão. Nessa altura, registei o que hoje, com surpresa, descobri publicado online:
“Jeremias Francisco Gaudêncio das Neves nasceu a 15 de julho de 1927, em S. Cosme, Gondomar, na Rua Sidónio Pais, junto ao Crasto. Filho de Jeremias Gaudêncio das Neves e Maria Ferreira de Moura, foi o terceiro fruto da união, mas o único que se vingou. A morte do pai, quando Jeremias tinha apenas sete anos, roubou-lhe uma infância protegida no lar. Em pouco tempo, o património da família (o pai era ourives) foi vendido, a mãe viu-se obrigada a trabalhar e Jeremias foi viver com uns tios, no Porto.” (Arquivo Histórico de Gondomar, s.d.)
Jeremias Neves teve uma vida pública relevante, ainda que não expressiva, tendo em conta o todo da sua história. Foi presidente da câmara e presidente dos bombeiros locais. Tirando isto, foi um implacável e invisível homem de negócios. Sustenho, neste ponto, os dados biográficos institucionais, para regressar à memória. Talvez comece a ser um pouco repetitiva, mas não posso deixar de citar James Carey (2009). É que Jeremias Neves não pertence ao reino da comunicação transmissiva, nem à esfera pública que o mundo mediatizado fabricou. Mas não deixa de ser uma placa na rua, um nome num quartel dos bombeiros. Observo o mau estado da placa, a indiferença a que é votada a memória da comunidade e o quanto isso é revelador do nosso nível de cidadania. Sou injusta. Os restos retumbantes da noite branca esfiampam-se no ar. O futuro parque urbano, em construção, promete uma vida melhor. Tudo isto extravasa para as redes sociais, tornando-se verdades incontornáveis. Carey terá sido ingenuamente otimista? A polis grega, da conversação olhos nos olhos, está em vias de extinção? O que vivi com Jeremias Neves poderá ter sido uma micro-história, sem peso, nem universalidade.
Retomo o fio da narrativa, em jeito de deambulação. Abandonei Jeremias Neves por uns bons tempos, até recomeçar a vê-lo (à distância), elegantemente ondulante, com o seu fato claro e o chapéu de abas largas, vagueando pelas ruas da cidade, marcadamente estrangeiro, no quotidiano desta malha incaracterística. Foi inevitável cruzar-me com ele, sempre galante, já com oito décadas cumpridas. E padecendo maleitas. Ofereceu-me um livro de Hemingway, trocávamos banalidades. E, por uma série de coincidências significantes, fomos unindo pontos em comum. Viajei, na Amazónia, no navio da Marques Pinto Navegação. Contexto: Jeremias Neves começou a trabalhar, quase criança, na Jomar, uma indústria de madeiras. O comércio de madeiras exóticas levou esta empresa (e também Jeremias Neves) à Amazónia, onde criaram uma empresa de navegação. O apelido Marques Pinto diz respeito à Jomar, mas também ao primeiro presidente da Fundação de Serralves, João Marques Pinto, que concretizou uma utopia de referência mundial, foi contemporâneo de Jeremias e com ele privou. Conheci, por motivos profissionais, na Fundação de Serralves, uma ex-funcionária de Jeremias, na Jomar. E assim se foi tecendo um fio de histórias acerca desta pessoa, que gostava de cultivar um certo mistério.
As geografias físicas emendam-se com as emocionais. Jeremias era um viajante, por isso me dá a sensação que não pertence a lado nenhum. Pediu-me para calcorrear os passos do pai, de quem pouco sabia, para documentar um pedido toponímico. Era a sua homenagem ao progenitor, combatente na Grande Guerra, feito prisioneiro em Naulila, Angola. Para sossego da sua mente, vasculhei bibliotecas e arquivos, à procura do mínimo que fosse. Em troca, pedi-lhe o seu relato de vida, já longe do enquadramento institucional da primeira versão. Disse-me umas coisas poucas, que mal gravei na memória, esforçando-me por reter esse momento, num contentor de uma imobiliária, no meio do betão do dormitório do Porto. Pouco depois da despedida, ligou-me a prometer novo encontro. Não chegou a acontecer. Só agora o selei, estimulada pela sinalética do espaço urbano.
Texto e imagens: Teresa Lima
Publicado a 23-09-2022
Referências
Arquivo Histórico de Gondomar. (s.d.). Jeremias Neves. Retrieved 13-09-2022 from https://arquivohistorico.cm-gondomar.pt/Destaques/Exposicao-Documental/Os-rostos-dos-presidentes/emodule/460/eitem/12
Bachelard, G. (1958/1996). A poética do espaço (A. d. C. Leal & L. d. V. S. Leal, Trans.). Martins Fontes.
Carey, J. W. (2009). Communication as culture, revised edition (2nd ed.). Routledge.
Tuan, Y.-f. (1977). Space and place: the perspective of experience. University of Minnesota Press.
LOCALIZAÇÃO
LOCAL: Porto
LATITUDE: 41.1380941
LONGITUDE: -8.5278973