A força catalisadora do Mercado do Bolhão – uma flânerie documental
Quando, a 30 de novembro de 1910, Hans Hittorff requereu à Câmara do Porto um candelabro anunciador provido de iluminação elétrica, montado na fachada da Rua Sá da Bandeira, n.º 259, já o mercado de avulsos do Bolhão assentava praça nas imediações, ainda ao ar livre. A licença para o reclame do Instituto Berlitz foi emitida em janeiro de 1911, sendo que a construção do atual edifício do Bolhão, da autoria de António Correia da Silva, iniciou-se em 1914.
Em 1915, decorria a Grande Guerra e foram a concurso as lojas do mercado, na primeira versão arquitetónica do edifício que chegou aos nossos dias. Em setembro de 2022, foi (re)inaugurado o novo espaço, apelidado pela autarquia local e pelos órgãos de comunicação social como a “alma” da cidade do Porto. Se a nova vida do mercado mais que justifica uma visita sensorial, o que propomos, com este microensaio, é, inversamente, um exercício de flânerie arquivística e documental, pelo que sobre o Bolhão se foi escrevendo e, também, sobre a vida comercial que se desenvolveu, nas artérias adjacentes ao mercado de frescos. Revisitamos, por isso, através dos documentos depositados no Arquivo Histórico-Municipal do Porto, a publicidade exterior (placas ou reclames) das lojas das ruas envolventes, num espaço temporal que começa em 1910 e termina em 1954. Deambulando pela memória deste traçado, tentaremos reconstituir a vida dos estabelecimentos comerciais que pulularam (e alguns deles ainda vingam) por força da energia centrípeta desse mercado, numa jornada de recuperação da memória que se vale das tabuletas publicitárias, solicitadas à Câmara do Porto, pelos proprietários dos estabelecimentos comerciais da cidade mercantil.
O Bolhão é, na forma, um edifício com uma funcionalidade arquitetónica claramente definida. Mas implantou-se, desde o início, na cidade, como gente, uma personagem que se funde com a identidade da urbe. “Mais de cento e cinquenta anos de vocação comercial fizeram do Bolhão um património que é, não só objeto, mas também conceito, porque é um monumento representativo de uma realidade coletiva que põe a tónica no ‘civismo’” (Nonell, p. 138). Do ponto de vista da ocupação urbanística, o conjunto arquitetónico tem sido, em grande parte, responsável pelos ciclos de vida de quatro artérias da cidade do Porto: Rua de Sá da Bandeira, Rua de Fernandes Tomás, Rua Formosa e Rua Alexandre Braga, onde se localizam as quatro entradas do mercado. Como refere Eugénio Leite, “a cidade também cresceu com a construção do Bolhão, criando deste lado um espaço amplo e uma moderna via de circulação” (2021, p. 34).
Apesar do charme que o mitifica, o Bolhão foi apresentando, ao longo da vida, as marcas da sua decrepitude e mesmo ostentando as suas fragilidades de nascença. A começar pelo facto de ter sido instalado num lameiro, como sugere o nome Bolhão, que alude à bolha de água existente no terrado onde se instalou o mercado. Em 1835, a Rua do Bolhão (atual Fernandes Tomás), foi adjetivada de “indigníssima” (Sousa Reis citado por Nonell, 1992, p. 68). Mas, já em 1877, Pinho Leal classificava o mercado de frescos de “elegante” (citado por Nonell, 1992, p. 78). E Alberto Pimentel, no guia turístico do Porto, refere o “bello mercado”, que “contém dous renques de elegantes barracas, e é sombreado de arvores. Ahi se vendem hortaliças, fructas, plantas, aves, flôres, etc.” (citado por Dias, 1992, p. 109). Como corpo que sofre as agruras do tempo, também o Bolhão foi padecendo de males crónicos ou congénitos, disfarçados pela narrativa turística (o já citado Alberto Pimentel) ou expostos pelos literatos da cidade, nos jornais. Apesar das avaliações realizadas, é certo que, funcionando como um catalisador da vida na cidade, no perímetro das artérias que o rodeiam, o Mercado do Bolhão é, genericamente, descrito, ao longo dos anos da sua vida, pela imprensa, institucionalmente ou nas descrições académicas, como um património da cidade, uma marca de solidez, perene no tempo. Contudo, como entidade que é, não só transforma a dinâmica do espaço urbano (as relações sociais, culturais e urbanísticas) como é transformado por esta. Explicitou o vereador dos Mercados da Câmara do Porto, Luís Oliveira Dias, há já duas décadas, que “o aumento demográfico, a reconversão do sistema de abastecimento, as carências de higiene, os cuidados na apresentação dos produtos e as próprias necessidades dos vendedores” apresentaram-se como fatores decisivos para a necessidade de reconversão do mercado (1992, p. 105). Há, também, que ter em conta o surgimento de novas centralidades na cidade, como a zona da Boavista, retirando força ao magnetismo inicial da vida na baixa. Significa isto, que, apesar da tendência para a cristalização de um certo imaginário social, o mercado persiste na sua função de organismo, isto é, um ser em permanente mudança.
Ir ao Bolhão é como visitar um amigo de longa data, a quem se reconhecem as velhas manhas, mas se desejam sempre muitos anos de vida. Assim se percebe que o valor “mercado” seja colocado, por Oliveira Dias, em segundo plano na proposta redigida, para entregar a organização das bases do concurso à Faculdade de Arquitetura do Porto, em 1990: “É um lugar visto com muito carinho pelos portuenses e constitui ainda um mercado (de produtos alimentares, flores e até outros bens) com relevo na vida da cidade” (1992, p. 123). Na altura, entre os problemas assinalados, constavam a ausência de saneamento e a dificuldade em adaptar-se às novas exigências comerciais.
As artérias que rodeiam o Bolhão são constituídas por lojas exteriores do mercado, mas não só. Toda a zona envolvente (não esquecer que, a dois passos, se situa a Rua de Santa Catarina) permanece contagiada pela finalidade comercial, que a praça de frescos despoletou. A Casa Hortícola, implantada no gaveto da Rua de Sá da Bandeira com a Rua Formosa é um dos estabelecimentos mais icónicos deste enquadramento. Por ali perto, também se instalou a Chic Pensão (antiga Tivoli), que já não existe. A Confeitaria do Bolhão (mesmo em frente à porta da Rua Formosa do mercado) sobreviveu ao tempo e mantém-se como uma das mais povoadas pastelarias deste perímetro urbano.
O que nos podem dizer sobre a cidade (ou sobre o que ela se pretendia representar) os objetos publicitários que promoviam o comércio da zona envolvente do Bolhão? O “Salão onde o Porto toma chá”, circulava, em 1940, pelas tampas de embalagens e biscoitos da confeitaria, assim como pelo serviço de carro elétrico do Porto. Na mesma altura, ontem como hoje, a mercearia fina Pérola do Bolhão vendia chá, café, frutos secos, bacalhau, queijos, bebidas e toda uma mistura de cores e cheiros, que se estende para a apelativa fachada do estabelecimento comercial. Mas, se estas duas lojas estão ainda presentes na vida da cidade, outras há cuja existência apenas se pode verificar na memória dos documentos conservados no Arquivo Histórico-Municipal do Porto, onde fizemos esta recolha. Na década de 40, o Salão Vasco e o Magalhães, na Rua Formosa vendiam uma certa ideia de sofisticação feminina, assim como a Rússia No Porto, na Rua de Fernandes Tomás. A cidade promove a beleza, moda, alimentação, produtos para a construção e tecnologia. A Vidrita (também instalada na Rua Formosa) anunciava-se para o comércio de vidros e molduras. Enquanto que o Constantino Casais, na Rua de Sá da Bandeira, publicitava produtos que nos parecem agora anacrónicos, mas que eram apresentados como a última novidade para o lar. Também em Sá da Bandeira, a emblemática Casa Forte, que ocupava um agora apetecível quarteirão para a voracidade imobiliária, marcava visualmente o espaço, com as vitrines de produtos para desporto, moda e casa. Em 1954, vestiu-se de néon para a celebração das três décadas da casa comercial.
Os reclames dos estabelecimentos comerciais do quadrilátero Bolhão tinham uma função, essencialmente prática, na informação que prestavam aos potenciais clientes, mas também simbólica. Podemos ler neles restos de uma cidade que chegou à atualidade e despojos de um passado comercial, que veiculava um modo de vida. Seja no requinte de um salão de chá ou num estabelecimento de materiais de construção. A deambulação documental guia-nos pelos sinais gráficos que cada uma destas imagens expõe. Talvez que o mais estimulante seja, apesar de tudo, o exercício de imaginação que, numa cidade real ou filtrada por placas publicitárias, sempre experimentamos, empurrados pelo gosto do vaguear acidental.
Texto: Teresa Lima
Imagens: Arquivo Histórico-Municipal do Porto
Publicado a 06-01-2023
Referências
Dias, L. O. (1992). Sentir e pensar os mercados e feiras do Porto. Inova – Artes Gráficas.
Leite, E. (2021). Bolhão, histórias e memórias. Fundação Eng. António de Almeida.
Nonell, A.-G. (1992). Mercado do Bolhão – Estudos e documentos. Câmara Municipal da Cidade do Porto.
Documentos consultados no Arquivo Histórico-Municipal do Porto:
- A Pérola do Bolhão: https://gisaweb.cm-porto.pt/units-of-description/documents/54444/?q=p%C3%A9rola+do+bolh%C3%A3o
- A Vidrita, vidros espelhos e molduras: https://gisaweb.cm-porto.pt/units-of-description/documents/752365/?
- Casa Forte:
https://gisaweb.cm-porto.pt/units-of-description/documents/752402/?
https://gisaweb.cm-porto.pt/units-of-description/documents/752406/?
- Casa Hortícola: https://gisaweb.cm-porto.pt/units-of-description/documents/305442/?q=casa+hort%C3%ADcola
- Confeitaria do Bolhão:
https://gisaweb.cm-porto.pt/units-of-description/documents/786463/?q=confeitaria+do+bolhão
https://gisaweb.cm-porto.pt/units-of-description/documents/590155/?q=confeitaria+do+bolhão
- Instituto de Línguas Berlitz: https://gisaweb.cm-porto.pt/units-of-description/documents/108546/?q=instituto+berlitz
- Magalhães & Companhia: https://gisaweb.cm-porto.pt/units-of-description/documents/752358/?
- Rua de Fernandes Tomás: https://gisaweb.cm-porto.pt/units-of-description/documents/713639/?q=rua+de+fernandes+tom%C3%A1s
- Rua de Sá da Bandeira: https://gisaweb.cm-porto.pt/units-of-description/documents/713641/?q=rua+de+s%C3%A1+da+bandeira
- Rússia no Porto, Lda.: https://gisaweb.cm-porto.pt/units-of-description/documents/752382/?
- Salão Vasco: https://gisaweb.cm-porto.pt/units-of-description/documents/752380/?
LOCALIZAÇÃO
LOCAL: Porto
LATITUDE: 41.1487813
LONGITUDE: -8.6073608