Paralelas na cidade 2 – A experiência do lugar de Tuan, em Santa Catarina

Calcorreamos três ruas paralelas da cidade do Porto: Bonjardim, Santa Catarina e Rua da Alegria. As três rasgam a baixa, desembocando junto ao Marquês. Paralelas na cidade é um olhar deambulante, necessariamente atento e emocional sobre o espaço urbano. Paralela 2 – Rua de Santa Catarina

Apreendi a rua pelo caminho da infância (Poveiros – Batalha), à espera das velhas confeitarias, o quiosque junto a Santo Ildefonso, um certo cheiro a cera religiosa. Mas não. A cidade já não é totalmente esta, embora não seja inteiramente outra. Meadas de lã continuam a encher montras, junto com botões e outros das retrosarias que me enchiam de tédio, pela espera. E permanecem os pregões (“a 5 euros”) da quinquilharia que se vende por Santa Catarina. A rua, vista do alto, faz sentido pela mancha de gente que sempre se acotovela nos primeiros metros, junto à zona comercial. Mas a lengalenga do velho manco “sefazfavordeixealgumacoisinha” há muito que desapareceu, assim como as delícias da Livraria Latina (agora rendida à lógica das grandes editoras), que me consolavam de uma penosa ida ao dentista. Eis o que se desenha a cada instante na urbe mutante: lojas fechadas, turistas em fila para o Majestic, sucessivos planos de obras e alojamentos “clean and safe”, mesmo ao lado da residencial caquética com uma estrela. Lá em cima, já sabe, mais perto do Marquês, o bulício diminui consideravelmente. E tornam-se mais visíveis as cáries da rua. Não será bom assim, mas há algo de assético na limpeza futurista dos novos empreendimentos. Sigamos, observando o estado do património.

Releio Tuan, à procura de uma explicação para este meu sentido de lugar, quase tornado metafísico, nesta rua. Um lugar de infância, que se incrustou como experiência, moldando o sentido do espaço. Quase imediatamente, me chegam à memória reverberações desses sentidos, a que alude o autor, na apreensão do corpo-cidade. Sim, é bem verdade que o espaço é um lugar que podemos habitar (Tuan, 1977). Habitei, em tardes de domingo, a rua quase vazia e o tal cheiro de madeira encerada em Santo Ildefonso (odiava, com culpa cristã, a missa vespertina na igreja escura). Peguei, como objeto físico, e senti na pele e com as mãos, o volume da rua cheia, como um formigueiro, nos sábados de compras. Antecipei o cheiro a tripa enfarinhada e galinhas do Mercado do Bolhão, ali perto. E experienciei agora mesmo o som como espaço que se incorpora e dramatiza o sentido de lugar: o zumzum disperso do início da rua, em contraponto à largueza e quietude da Santa Catarina burguesa, já perto do Marquês, Antas, a cidade de gente bem vestida, que envergonha suburbanos. Por fim, redescobri, como coisa nova e desempoeirada, as lojas de produtos africanos, os postos de venda indianos. Mais acima, a Casa de Saúde de Santa Catarina devolve-me as incertezas da infância: está ali, existe, associo-a sempre a um bolo de arroz. Hesito, mas não a registo como imagem fotográfica.

Texto e imagens: Teresa Lima

Publicado a 21-03-2022

Referência

Tuan, Y.F. (1977). Space and place : the perspective of experience. University of Minnesota Press.

 

LOCALIZAÇÃO

LOCAL: Porto

LATITUDE: 41.1534763

LONGITUDE: -8.6047487