A Covid-19 no discurso da street art

O discurso é uma ferramenta usada tanto em tempos de paz como nos de discórdia. Envolve linguagem verbal, imagens, atores sociais e um contexto específico (Paltridge, 2012). Como é habitual, nos períodos de instabilidade e de crise, há vozes que têm a necessidade de se fazer ouvir e as manifestações artísticas de rua, de índole popular e informal, são fundamentais para a sua projeção no discurso público. Neste ensaio queremos destacar o discurso produzido pela street art durante a pandemia da Covid-19, uma forma de arte por vezes incompreendida e desvalorizada, dada a natureza frequentemente ilícita desta intervenção de rua (Campos & Sequeira, 2018, p. 78).

Sendo a street art um retrato da realidade, o discurso que produz integrou o crescimento e o desenvolvimento da pandemia no contexto mundial. Muitos foram os trabalhos feitos nas ruas das cidades que desenvolveram essa temática. Este tipo de arte é possível a todos e não importa tanto o seu criador, mas antes a mensagem que quer transmitir e/ou o momento que quer marcar.

Para o presente micro-ensaio, escolhemos dois trabalhos que retratam a situação pandémica em que nos encontramos através do uso da imagem e da linguagem escrita. Os exemplos de discurso que selecionamos não são proferidos por um grupo de poder, mas antes uma representação de protesto, ou mesmo de resistência, a esses poderes. É importante salientar que o discurso faz alguma coisa, visto que é intencional e através dele podem-se modelar as representações sociais sobre determinados assuntos.

 

Figura 1 – “We Can Do It” versão Covid-19[1]

Créditos: Jason Cairnduff

Figura 2 – “Qual lado da corda você tá?”[2]

Créditos: Nelson Almeida

 

A obra mostrada na figura 1 foi desenhada em Dublin, na Irlanda. Este país lidou, e continua a lidar, sobriamente no combate à pandemia: como os restantes países da Europa, a Irlanda já teve de lidar com uma série de confinamentos e medidas restritivas.

Nesta peça de arte urbana é destacada a importância dos profissionais de saúde no combate à pandemia. Estes são apelidados de heróis, pois estão de facto sujeitos a um enorme sacrifício no combate ao vírus. No topo da peça lê-se a frase: “We can do it”, com o objetivo de passar uma mensagem de esperança e de força aos cidadãos do país, bem como aos profissionais que se encontram na linha da frente. O gesto do profissional de saúde e as cores vivas ajudam a transmitir a esperança de que tudo ficará bem. O objetivo é passar a ideia de que é possível ultrapassar este período complicado que todos vivemos. Além disso, elogia o trabalho feito pelos profissionais de saúde retratando-os como heróis.

A imagem 2 refere-se a uma situação mais especifica: a gestão da pandemia feita pelo governo brasileiro. Pode ler-se a frase: “Qual lado da corda você está?”. Do lado direito está ilustrado o presidente brasileiro Jair Bolsonaro juntamente com a imagem do vírus com formato humano, do outro lado dois profissionais de saúde. Os profissionais de saúde são novamente espelhados como heróis, sendo que um deles até tem uma capa, o que remete para o imaginário dos heróis da banda desenhada. Jair Bolsonaro é retratado como um “ajudante” do vírus. A cor vermelha das letras ajuda a transmitir uma mensagem impactante. Tem a finalidade de criticar a gestão feita pelo presidente brasileiro Jair Bolsonaro, passando a mensagem que este está do lado vírus e não do lado dos profissionais de saúde. Deste modo, a peça de arte serve como uma forma de consciencializar o povo brasileiro. Relembramos que o Brasil foi, e continua a ser, um dos países mais afetados pela pandemia, mas que adotou menos medidas de controlo da situação.

Tomando em comparação os dois países de onde escolhemos as peças de street art, percebemos que, na Irlanda que tem vindo a demonstrar rigidez no combate à pandemia, a mensagem estampada reflete uma perspetiva positiva e de confiança. Enquanto no Brasil, a mensagem adotada demonstra revolta e discórdia, um contexto em que é evidente o descontentamento face à forma como o governo do país está a lidar com a Covid-19. O facto de a posição de Ministro da Saúde no Brasil já ter sido ocupada por quatro pessoas diferentes desde o inicio da pandemia só revela ainda mais a instabilidade pela qual o país está a atravessar [3].

Estas escolhas refletem a posição que os autores, nestes casos artistas de rua, têm sobre a pandemia da Covid-19. É de fácil compreensão que os autores têm grande confiança nos profissionais de saúde. O exemplo numero 1 reflete uma atitude otimista face ao combate do novo coronavírus, realçando, o papel crucial dos profissionais de saúde e de todos aqueles que se encontram na linha da frente, tal como daqueles que dão o seu melhor no combate. Acreditamos que o autor desta imagem pretendia que aqueles que a visualizam, encontrassem um significado paralelo com a que lhe serve de molde. Relembra- se aqui que a icónica imagem “We can do it”, atualmente associada ao movimento feminista, foi produzida como propaganda de guerra nos Estados Unidos em 1943. O que nos leva à questão: será que o autor queria fazer uma analogia entre guerra e a pandemia da Covid-19? É de facto engraçado que, no momento em que esta fotografia foi captada, se encontra uma pessoa sem máscara a passar em frente a esta figura. Será que o fotógrafo teve, desde logo, interesse em ver representada esta antítese? Se por um lado o autor do desenho pretendia passar uma mensagem positiva, o fotógrafo fez-nos questionar sobre a sua posição no mundo real.

No exemplo 2, é óbvio que o autor assume uma posição contra as autoridades governativas do Brasil. Ao produzir o discurso “Qual lado da corda você tá?” percebe-se que não concorda com as medidas ou com a forma como se está a lidar com o surto pandémico no país e que declara que o Brasil se encontra a fazer um jogo de forças entre os profissionais de saúde e os governantes. Assumiu que estes dois grandes grupos não se encontram na mesma posição do jogo e que por isso somos nós, cidadãos comuns, a escolher o lado de que queremos combater. Tal como no exemplo anterior, o fotógrafo enquadrou o momento com uma pessoa no meio da corda. Neste caso, podemos adivinhar em qual lado da corda vai fazer força. Esta peça de street art suscita nos espectadores a consciência de que nem sempre está toda a gente a torcer pelo melhor.

Comparando as duas peças, vemos que a imagem da figura 1 apela à esperança em momentos difíceis e à força que a sociedade necessita para continuar a “lutar” nesta “guerra”. Por sua vez, a reproduzida na figura 2 questiona o público sobre o papel que cada indivíduo quer desempenhar na pandemia. Se por um lado temos a força e o trabalho árduo feito pelos profissionais de saúde que são comparados a heróis, no outro lado encontra-se o vírus como ator social e o Bolsonaro como um alvo muito criticado pela sua posição face ao mesmo.

Tanto na figura 1 como na figura 2 a pandemia é representada como uma batalha. Os criadores das duas imagens, em momento algum, tomam uma posição de superioridade. Mantém-se na mesma posição do público já que é uma batalha de todos e as decisões são impactantes para toda a sociedade. Esta realidade é uma estratégia utilizada pelos artistas. Manter todos os indivíduos no mesmo nível, o apelo à empatia e às boas atitudes para não pôr em causa a saúde dos outros, o discurso acessível para a fácil perceção, as comparações feitas com uma guerra e a atribuição aos profissionais de saúde do papel de soldados como atores sociais na batalha que se vive, são alternativas que os criadores utilizam para a divulgação do seu trabalho. Embora criadas por diferentes artistas, em países diferentes, retratam a mesma situação e o propósito, de certa forma, é o mesmo. Encarar a pandemia como uma batalha e a importância de escolher de que lado é que vamos ficar. Os artistas pretendem que as pessoas reflitam sobre esta temática, já que nesta situação é importante decidir de que lado estamos e se, por vezes, tivermos dúvidas, “We can do it”, como nos diz a figura 1.

As estratégias discursivas usadas para realizar as funções comunicativas desenhadas pelos artistas são desenvolvidas em torno de uma linguagem acessível para ser entendida por todo o público e assim chegar a mais pessoas. Tanto a figura 1 como a 2 comunicam um conhecimento específico — acerca do uso da máscara —, e representam o vírus como se fosse algo palpável (Herrera, 2020). Ambas têm a finalidade de levar as pessoas a tomarem uma atitude consistente na escolha do melhor lado, neste caso, o lado da proteção e do uso de máscara e que admitam que a batalha pode ser complicada, mas que conseguimos ganhar como uma equipa.

Em conclusão, o valor político do discurso apresentado nestas figuras não é menor pelo facto de serem peças de street art, visto que aqui os criadores das obras não agiram como indivíduos, mas em nome de uma sociedade que precisava de uma voz coletiva face às mudanças feitas durante a pandemia. O discurso usado em ambos os exemplos é aparentemente simples, todavia pleno de significações implícitas impactantes e propulsionadoras de reflexão.

 

Braga, Abril de 2021

António Câmara, Cristiana Melo, Luísa Machado, Tiago Picas

Estudantes de Ciências da Comunicação, 1º ciclo, Universidade do Minho

 

 

 

Referências

Campos, R. & Sequeira, Á. (2018). O mundo da arte urbana emergente: contextos e atores. Todas as artes. Revista luso-brasileira de artes e cultura, 1(2), 70-93. Retirado de https://ojs.letras.up.pt/index.php/taa/article/view/5395

Herrera, E. C. (2020). El virus como algo o alguien. La representación discursiva del virus como un agente. Pensamiento al margen. Revista Digital de Ideas Políticas [Vol. Especial], 20-33. Retirado de https://pensamientoalmargen.com/2021/02/11/especial-discursos-emergentes-sobre-la-pandemia/

Paltridge, B. (2012). Discourse analysis. An introduction (pp. 12-25). Londres: Continuum.