O que é a cidade?

A cidade-arquipélago: músicas, sons e imagens construindo pontes e tecendo territorialidades

 

A cidade pode ser muitas. Existem cidades dentro da cidade que se compõem a partir de redes-rizomas de práticas, usos, afetos, gostos e experiências (táteis, gustativas, olfativas, sonoras e imagéticas) que, amalgamadas, tecem formas e modos de ser diversos.  As cidades são arranjos sociais, espaciais, temporais, corporais, emocionais e técnicos que dão a ver as interações racionais-sensíveis dos diversos lugares que as formam.

Considerando esse caleidoscópio citadino, convida-se o leitor a deslocar-se para uma compreensão da cidade que considera a complexidade e a mutabilidade constante das conformações dos espaços pelas experiências sonoro-musicais. Ou seja, sugere-se realizar um movimento em direção a um modo de perceber a urbes – o qual coloca “em suspensão” a separação tempo/espaço, sujeito/objeto, natureza/cultura, real/virtual -, no entendimento de que as experiências sonoras partilhadas são capazes de se materializar delineando múltiplas territorialidades ou ambiências.

Inspirada em Ítalo Calvino, repouso meu olhar sobre as cidades menos visíveis, sensíveis e imaginárias.  E assim, assumindo como caminho compreensivo-perceptivo a busca dos sentidos das interações sensíveis nos espaços da cidade, o “corpo-pensamento” da pesquisadora debruça-se sobre as diversas experiências coletivas cotidianas, que se inventam e reinventam – nos interstícios da cidade programada e funcional – através da música e do som, associados às imagens e imaginários, potencializando processos de ressignificação desses lugares por meio de dinâmicas comunicacionais fundadoras de múltiplas “territorialidades sônico-musicais” (Herschmann & Fernandes, 2014).

Praticando errâncias compreendo que a cidade se delineia enquanto um arquipélago (ilhas-redes) e não como uma unidade moderna (centro-periferia).  Essas espacialidades apresentam-se como um ambiente comunicativo de sentidos. Espaços não somente inteligíveis, mas sensíveis, afetivos, onde existir é arriscar-se em outras possibilidades.  E essa aventura “erótica” dos corpos com as cidades, suscita outros significados para os espaços urbanos ao se transformarem em lugares. “Lugarizam-se” (Santos, 2002) na medida em que os corpos se apropriam dos territórios, sentindo-os, interagindo com o ambiente, desvelando-o ao mesmo tempo que se desvelam, gerando a possibilidade de infinitas conformações de espacialidades que tecem o cotidiano da cidade. Seria aquilo que Santos (2002) chamou de “espaços do acontecer solidário”, que definem usos e geram valores de múltiplas naturezas – culturais, antropológicos, econômicos e sociais –, em que se pressupõem coexistências culturais.

Essas coexistências comunicam-se nas cidades-arquipélagos por meio de “portas e pontes” (em todas suas modulações técnicas e imaginárias), como sugeridas por Simmel (2013). O interessante é perceber que, a dupla função destas influencia na dinâmica urbana, pois, ao mesmo tempo em que uma porta se abre, ela delimita o espaço das relações e interações sociais ao territorializar as diversas expressões culturais e imaginários; o mesmo ocorre com a ponte, pois ao mesmo tempo em que essa conecta, possibilitando identificações, delimita as fronteiras definindo os “lugares de cada um”. Desse modo, conteúdo e forma social nascem no jogo das socialidades por meio da partilha de emoções e afetos (“estética”), potencializando heterotopias.

Essas redes, cujos movimentos se fazem por “enraizamentos dinâmicos”, abrangem desde os canais comunicativos (com suas pontes e portas) mais concretos e reais – que vão desde as estruturas de comunicação arquitetônicas de uma cidade como viadutos, galerias, praças, ruas, monumentos – até as formas de representação simbólica (como, por exemplo, o fato de alguns desses espaços servirem como lugares de encontro homologados por uma determinada convenção grupal). Esses processos simbólicos e concretos permitem os encontros e os reconhecimentos das tribos urbanas (Maffesoli, 1987) que vivem, em si mesmas, suas pluridimensionalidades sensoriais nos espaços das cidades.

Penso, então, essa rede-rizoma como comunhão de sentidos e significados compartilhados, que necessitam de um reconhecimento não apenas cognitivo-racional, mas emocional-relacional. A comunicação, neste sentido, pressupõe algum nível de comunhão. Esse é um ponto fundamental, pois é preciso primeiro ocorrer um compartilhar, uma comunhão de sentidos, sentimentos e significados para haver comunicação.

A rede de ilhas, ou arquipélagos, desse modo, apresenta os imaginários e as tessituras relacionais que acomodam essa comunicação sócio-cultural-espacial contribuindo para a experiência do “estar junto”, no sentido antropológico. A cidade-arquipélago resgata o sentido mesmo de uma religiosidade sincrética (Maffesoli, 2003), que integra diversas territorialidades.

Cidades como Rio de Janeiro ou Istambul, por exemplo, reconhecidas dentro da categoria de metrópole, são formadas por uma variedade de “redes de comunicação-comunhão”, em que se celebram e festejam diferentes éticas e estéticas, onde os corpos, em suas infinitas possibilidades, interagem com os espaços transformando território-espaço (localizado-métrico-objetivado) em territorialidade-espacialidade (lugarizada-relacional-emocional). Interessante é notar que a “lugarização” dos espaços rompe e desloca os conceitos modernos de público e privado traçados na dicotomia entre a rua (espaço da imprevisibilidade, insegurança e das tensões) e a casa (espaço do previsível, segurança e do aconchego, o familiar). Nessas cidades-arquipélagos a rua é a casa!

Há uma transfiguração dos espaços da cidade que se faz a partir das interações entre corpos-indivíduos e ambientes (com todo o seu aparato concreto e simbólico) que deflagram – a partir dos usos e práticas cotidianos – uma ressignificação dos espaços urbanos. Nesses pequenos rituais de existência cotidiana do compartilhar das relações, constrói-se os sentidos próprios de cada lugar sedimentado pelo entendimento de que “eu sou” a apresentação do “mundo que compartilho com os outros”. E esse ethos representa tanto o mundo racional, como o mundo emocional e afetivo que oferece sentidos e significados à expressão ética da estética (emoção comum). Neste sentido, o prazer estético e a harmonia física e social estão profundamente entrelaçados e dão-se a ver na estética de um lugar, de um grupo, de um novo desenho arquitetural, de uma expressão coletiva revelada em diversas ambiências e territorialidades (La Rocca, 2018; Herschmann & Fernandes, 2014).

São exatamente nesses aparentes pequenos lugares das cidades que se encontram os “altos lugares” que exercem as funções de elaborar os “mistérios da comunicação-comunhão” (Maffesoli, 2003). Outro fator importante é que a imagem de um grupo, fecundada por detrás das “portas”, lança-se para além dessas fronteiras e atravessa “pontes” que ligam, relacionam com o todo social, num movimento de justaposição relacional. Ao mesmo tempo em que os corpos procuram enraizar-se em seus “pequenos lugares”, também se lançam em busca de outras potencialidades de comunicação, que tecem as redes cotidianas nas quais “as portas” são abertas e fechadas, e “as pontes” ora os levam, ora os reconduzem aos seus “pequenos altos lugares”. Esse paradoxo é vivido nos tempos atuais e para Maffesoli (2003) ele possibilita o “enraizamento dinâmico”.

[seja no] Quartier Latin, Shinjuku, Copacabana, Manhattan, Kreusberg ou Trastevere. A lista é longa dos “altos lugares” que nós podemos fantasmaticamente ou fisicamente investir. E de fato nós encontramos (…) “altos lugares” que formam os nichos nas grandes megalópoles (…), nos quais podemos passar o tempo com os outros. Cada um destes pequenos altos-lugares pode ser substantivado, cada um torna-se um “lugar-dito”. (Maffesoli, 2003, pp. 78-79)

Seguindo as experiências dos sons e músicas nas cidades, alguns “altos lugares” do Rio de Janeiro seguem sendo “corpografados” pelos grupos de pesquisa Comunicação, Arte e Cidade (CAC-UERJ) e Núcleo de Estudo e Pesquisas em Comunicação (NEPCOM-UFRJ), em atividades de pesquisa conjuntamente realizadas.  A primeira cartografia realizada no centro da cidade do Rio de Janeiro, em 2014, valoriza as experiências corporais que gravitam em torno da música e das experiências sonoras e imaginárias que têm como fruto, em geral, situações de détournement e dissidências (Ranciére, 2009) que são capazes de criar, desenhar novas ambiências e alianças societais. Essa cartografia convida a navegar pelos espaços da cidade tendo como referência as músicas, os locais, as narrativas de quem produz e frequenta, os circuitos sonoros-musicais e suas ambiências. A cartografia dá a ver “as pontes e portas” construídas pelas socialidades dos/entre grupos.

Assim como a “cartografia musical do centro do Rio de Janeiro”, o documentário Atravessando a ponte: o Som de Istambul – dirigido por Fatih Akin em 2005 – convida a uma jornada musical pela cidade de Istambul. O músico Alexander Hacke, da banda alemã Einsturzende Neubauten, torna-se a ponte entre o diretor e os músicos da cidade. O espectador navegará, ao longo do documentário, por meio das experiências sonoro-musicais que mesclam rock psicodélico, influências de jazz, rock e hip-hop com sons orientais como música tradicional turca, romena, curda etc. Os “pequenos altos-lugares” de Istambul reveladores de espaços, vidas e hibridismos culturais entre os Ocidentes e os Orientes, tecem territorialidades. O documentarista, cuja ascendência é turca, corpografa a cidade revelando as pontes culturais e interculturais entre Ocidente e Oriente, entre o seu país, Alemanha, e a Turquia. O documentarista corpografa a cidade turca revelando as pontes culturais e interculturais capilarizada no seu país.

Em ambos casos, a música é fundante das expressões e imaginários dos espaços. Essas experiências cartográficas dos sons, músicas e imagens das cidades levam a pensar as cidades como propôs Jacobs (2000), na qualidade de “sistemas abertos” constituídos empiricamente por práticas cotidianas. Esses sistemas enfrentam cotidianamente interferências e incertezas do acaso. A cidade-arquipélago seria composta por inúmeros sistemas abertos e polimorfos.

A força movente da música e do som nas cidades invocam uma abertura do corpo-pesquisador/a ao pluri-sensorial, à perspectiva afetiva, às situações ordinárias, sentindo os lugares como experiência co-habitativa, que podem ser mapeadas através da “deriva psicogeográfica”, como fizeram os situacionistas; Ou ainda, como Bey (2001) e Careri (2013), trabalhar a partir das “zonas autônomas temporárias” ou “espaços nômades”, porque não podemos correr o risco de propor uma história geral das cidades contemporâneas. E assim, desenharíamos, um “mapa-arquipélago”, descentrando a dicotomia “centro-periferia”, ao considerar as sensibilidades locais, os genius loci de cada lugar.

Parte-se do pressuposto de que é preciso desconstruir a linearidade porque, ao tentar saber “o que são as cidades”, estamos falando de espaços-tempos-culturas diversos e, por vezes, distintos.  Quem sabe podemos pensar em espirais, em desvios, em movimentos e nomadismos a fim de desenhar coletivamente uma cartografia sônico-musical onde daríamos a ver as diferenças e aproximações das territorialidades de diversas cidades. Ou seja, dar a “escutar” as multiplicidades de existências. As coexistências potentes do nosso tempo social que atravessam pontes e abrem portas.  Em certo sentido, constituiriam-se em mapas errantes sonoros das Cidades-Arquipélagos.

Essas experiências, por sua vez, ajudariam na reflexão sobre as diversas ambiências vividas e edificadas “nas interações sonoras e musicais em ato”.  Podemos repensar as cidades a partir das suas ambiências sonoras, paisagens sonoras ou territorialidades sônico-musicais, considerando estas noções dentro de uma perspectiva que leve em conta a fluidez das situações espaciais e as particularidades estéticas que são compartilhadas no cotidiano.

Emprega-se nas cartografias o conceito de “paisagem” como proposto por Rancière (2020): como aquilo que não se limita, como o espaço do indeterminado, como aquilo que explode, que transborda, que escapa, parece algo potente para se pensar a ambiência enquanto paisagem nômade. Assim, a paisagem sonoro-musical é a que se constrói no entre e no movimento, e nas quais se convive com esse transbordamento das alteridades, onde se experiencia as coexistências. Pode ser pensada como a textura da experiência estética que redefine inclusive a “partilha do sensível” (Rancière, 2009) de diversas comunidades e de experiências comuns. E assim, poderia perceber-se essas ambiências, com suas particularidades estéticas, seus arranjos de sentidos, a partir das poéticas errantes das músicas e dos sons.  Seguiríamos os conselhos de Confúcio, citado no início do documentário apresentado acima: “para se entender a cultura de um país você precisa ouvir a música que é feita ali… a música sempre conta tudo sobre um lugar”.

 

Cíntia Sanmartin Fernandes

 

Referências

Bey, H. (2001). TAZ: Zona autônoma temporária. São Paulo: Conrad.

Calvino, I. (2000). As cidades invisíveis. São Paulo: Companhia das Letras.

Careri, F. (2013). Walkscapes. Barcelona: Gustavo Gili.

Guattari, F. & Rolnik, S. (1986). Micropolíticacartografias do desejo. Petrópolis: Vozes.

Herschmann, M. & Fernandes, C. S. (2014). Música nas ruas do Rio de Janeiro. São Paulo: Ed. Intercom.

Jacobs, J. (2000). Morte e vida das grandes cidades. São Paulo: Martins Fontes.

La Rocca, F. (2018). A cidade em todas as suas formas. Porto Alegre: Ed. Sulina.

Maffesoli, M. (2017). Écosofhie. Paris: Les Éditions du Cerf.

Maffesoli, M. (2003). Notes sur la postmodernité: le lieu fait lien. Paris: Editions du Felin-Institu du Mond Arabe.

Maffesoli, M. (1987). O tempo das tribos. Rio de Janeiro: Forense-Universitária.

Marcolini, P. (2013). Le mouvement situacioniste. Montreuil: Éditions L’Échappée.

Rancière, J. (2020). Le temps du paysage. Aux origines de la révolution esthétique. Paris: La Fabrique Éditions.

Rancière, J. (2009). A partilha do sensível. São Paulo: Ed. 34.

Santos, M. (2000). Território e sociedade. São Paulo: Fundação Perseu Abramo.

Santos, M.  (2002). A natureza do espaço. São Paulo: EDUSP.

Simmel, G. (2013). Les grandes villes et la vie de l’esprit. Paris: Petite Bibliothèque Payot.

 

Referências sugeridas

  • Uma obra cinematográfica/filme/documentário: Akin, F. (Realizador). (2005). Atravessando a ponte – O som de Istambul [Documentário/Musical]. Alemanha/Turquia: Bavaria Film International.