A arte de passar o tempo. Revisitando os objetos de Henrique Baixinho
Desde meados do século XIX que se discute o tema do tédio, por alguns designado como o mal du siècle. O tema foi sendo tratado por diversos filósofos: Pascal, Schopenhauer, Kierkegaard, Nietzsche, Heidegger…Em finais dos anos 20, a par dos contributos de outros pensadores tais como Thomas Mann, Siegfried Kracauer ou Walter Benjamin, Heidegger (2005; 2007) questiona-se sobre a essência da modernidade. Poderemos defini-la como “a época da imagem do mundo”? Pode o mundo converter-se em imagem? Falamos de “imagem” no sentido em que se pode discutir uma teoria humanista a partir da observação e da contemplação do mundo, não se prefigurando no uso específico deste conceito o entendimento político-ideológico e crítico que lhe emprestam os autores da Escola de Frankfurt ou mesmo, mais tarde, o Internacional Situacionismo, com Guy Debord e afins.
Faço desde já este preâmbulo para notar que talvez, pelo menos, o nosso pequeno mundo subjetivo seja em parte construído pelas e com as imagens-objeto que nos fazem companhia, aquelas que vamos adotando como quem adota um animal doméstico, imagens parceiras do nosso quotidiano. Foi este sentido de perseguição do desejo de transformação da experiência em imagem, auspiciado por Heidegger (2005; 2007), que me levou a revisitar a loja-oficina de Henrique Baixinho, ainda que hesitante sobre as renovadas motivações que para ali me empurram:
Estamos no dia 16 de agosto, uma segunda-feira de manhã, em Caminha. Dirijo-me ao atelier de Henrique Baixinho e ainda do outro lado da rua, junto aos CTT, vejo-o à porta. Aproximo-me e sugiro, já lá dentro, que me conte a história do seu “passatempo”, enquanto revisito as suas peças em exposição, ou melhor, objetos amontoados naquele que é agora metade do espaço onde estivera até há um ano atrás, ocupando então duas lojas contíguas, em vez de apenas uma. Começo por recordar-lhe que estivera ali na semana passada e que já em anos anteriores lhe havia comprado duas peças: um cão de madeira pintada de azul, com pernas pretas e escovas cor-de-rosa de drogaria a fazer de dentes (“escultura” que o meu filho preza de um modo especial e ainda hoje mantém na mesinha de cabeceira do seu quarto) e uma colher de pau pintada metade de vermelho e metade de amarelo erguida ao alto, com duas mãos (tendo por modelo as mãos da neta de Baixinho, pelo que venho entretanto a saber) cor-de-rosa, uma de cada lado, peça que convive com outros objetos decorativos no fogão de sala da nossa casa de férias, em Moledo. Ambos os objetos sugerem um leve sentido de humor. (Nota de campo, 16 de agosto de 2021, Caminha)
No dia-a-dia tornamo-nos indiferentes à pre-sença, ao que parece e aparece, àquilo que manifestando-se não se mostra. O que dizer daquilo que só se manifesta por meio dos objetos, nomeadamente no espaço doméstico? Qual o seu modo indeterminado de ser? A sua medianidade? (Heidegger). Decidi contrariar o esquecimento da presença quotidiana e deixar-me conduzir pelo carácter enigmático do cão-escova pousado na cabeceira do meu filho, das mãos com cara de colher-de-pau que animam o beiral da lareira… Como defende Svendson (2006), contrariando o imperativo de Heidegger de um sentido existencial profundo a descobrir, na contemporaneidade não restarão mais do que os sentidos das pequenas coisas do quotidiano, o trabalho, os hobbies… Admitindo a importância do tédio como meio para o auto-conhecimento, Svendson, alerta, precisamente, para o risco de se desprezar o sentido pessoal depositada em todas as coisas, sob a ilusão de se aguardar pela revelação de um “grande sentido”. À conversa com Baixinho, enquanto usufruía de mais uma visita ao seu atelier, em Caminha, Moledo do Minho, deixei-me levar pelo desejo de compreender o lugar de um tão original passatempo na sua vida. Múltiplos mistérios, ao mesmo tempo que outras tantas revelações, se adensaram:
O ofício terá nascido da urgência de ‘passar o tempo’ entre os treinos – ‘o que fazer, ir para o café?’ pergunta-se a si mesmo -, em 2003, altura em que Henrique Baixinho, remador profissional e atleta consagrado com múltiplos títulos, a nível nacional e no estrangeiro, regressou do Brasil, depois de oito anos ali passados como treinador. Fazendo 60 nos em setembro, é treinador em Vila Nova de Cerveira e participa em competições. No decorrer da conversa fala da competição de remo em que participou no fim-de-semana, em Oeiras, prova difícil, dado que “o mar estava bravo” – mostra-me os cortes nas pernas -, embora tal não o tenha impedido de arrecadar mais uma medalha. Cruzado com a sua vida de atleta, o interesse pelo universo das bicicletas (tendo chegado a participar em provas) revela-se favorável à comunicação entre ambos os universos da sua atividade quotidiana: o desporto, por um lado, o passatempo de (re)criação de objetos na oficina, por outro. É nas garagens de reparação de bicicletas que foi encontrando muitas das peças – farolins, guiadores, rodas, correntes… – que reutiliza no fabrico dos seus objetos. A cumplicidade que foi alimentando com garagistas conhecidos, a troco de ali recorrer, por seu turno, na qualidade de cliente, é preciosa, chegando a haver alturas em que estes lhe telefonam quando têm materiais residuais ou sobrantes, com interesse para recolha. (Nota de campo, 16 de agosto de 2021, Caminha)
As inutilidades que Baixinho descobre nas garagens e outras paragens transformam-se, nas suas mãos, em potenciais analgésicos contra o aborrecimento. Tal é o propósito que impera sobre potenciais “utilidades”. De resto, a utilidade é um princípio que parece dizer pouco a Henrique, aparentemente investido num mero exercício de criatividade, para passar tempo, sem uma outra clara finalidade à vista. Como terá dito Ovídio, numa das Epistulae ex Ponto: “… nada é mais útil/do que esta arte que não tem utilidade” (citado por Ordine, 2018, p. 57). As peças de Baixinho sugerem-nos de imediato a alargada discussão que se tem inclinado sobre “a utilidade do inútil” (usamos a expressão em alusão ao título da obra de Nuccio Urdine, já referenciada), a respeito da literatura e da arte em geral. A arte pela arte poderá ser um outro modo de dizer a recusa da finalidade artística. Remetendo para Heidegger, observa Urdine: “O filósofo alemão, na tentativa de libertar a ideia de utilidade de uma exclusiva finalidade técnica e comercial, exprime com clareza a dificuldade generalizada entre os seus contemporâneos de compreender a importância do inútil. Para o «homem actual», de facto, é cada vez mis complicado sentir interesse por qualquer coisa que não implique um uso prático e imediato para «fins técnicos»” (Urdine, 2018, p. 80).
Em particular, o motivo da bicicleta conduz-me a Duchamp e acabo por descobrir curiosas facetas do ofício criativo de Baixinho, em alguns casos em moldes de “arte-co-criada” e reinventada ao sabor da acidentalidade:
A bicicleta é claramente um dos principais referentes que de diferentes modos integra, literalmente, a composição de muitas das peças. A comparação com a Roda de Bicicleta (1913), de Marcel Duchamp, uma obra de assemblage que conjuga uma roda sobre um banco, é inevitável. Baixinho diz não conhecer o artista, nem a dita obra. Refere vagamente que aprecia arte, relevando a Bienal de Cerveira, e quando lhe pergunto se ali mesmo em Caminha existem outros artistas locais, destaca um artista latoeiro que entretanto falecera. A sua relação com a arte resulta sobretudo da sua relação com alguns a algumas clientes ou colaboradores. Ou porque Henrique lhes pede que acabem determinadas peças pintando-as, ora porque lhe encomendam peças que posteriormente são de alguma maneira finalizadas pelos clientes-artistas. Tal é o caso de uma peça que descubro no interior do atelier, pousada no chão, composta de cornos (verdadeiros) de animal, conseguidos num talho, e cabeça feita de fibra. A cliente irá ela mesma, posteriormente, pintar a peça. Cada peça é determinada por uma circunstância e, como tal, única: “não irei conseguir outro par de cornos, até porque não é fácil chegar a um talho e fazer um segundo pedido destes… seria lá atrás, quando a minha mãe tinha dois talhos (…)”. Outra das peças, evidenciada, decorre de uma encomenda, de uma cliente que trouxera peças de lixo eletrónico, incluindo ratos de computador, de um familiar profissional ou especialista na área, e que desafiara Henrique a recriar uma peça criativa para lhe oferecer. Juntam-se outros relatos de episódios em que clientes haviam trazido a matéria-prima para transformação. Pedaços de madeira, colheres, velharias…Alguns fazem sugestões sobre o tipo de efeito final que pretendem, outros reagem à proposta de recriação acrescentando sugestões ou rejeitando ideias e propondo outras… Recorto ainda o episódio do tubarão de cinco metros, outrora exposto na segunda loja e agora propriedade de “uns arquitetos que o puseram na sua casa de férias”. Henrique mostra-me a fotografia da peça, orgulhoso da escala e dificuldades técnicas de execução que ultrapassara, as quais me explica ao pormenor… ou o caso do francês que comprara a enorme casa em construção ao lado (assim como outros edifícios no centro de Caminha) e que lhe encomendara uma baleia de grande escala, em ferro enferrujado, para fazer de companhia à piscina…Henrique conta-me esta história enquanto exibe entre mãos o protótipo, uma baleia de madeira de tamanho pequeno e cauda revestida a metal (“para não quebrar”). Ainda terá de fazer o molde, fazer a testagem do mesmo no local e só depois encomendar a feitura da peça a um ferreiro… (Nota de campo, 16 de agosto de 2021, Caminha)
A loja-oficina de Baixinho produz no visitante a impressão de imersão, não só num espaço semi-privado, como num espaço pertencente a uma ordem temporal doméstica, evocativo de rotinas, de memórias, ritmado pelas nuances entre sombras densas e alguns recantos de meia-luz. Não é difícil ali pre-sentir a passagem vagarosa do tempo, passagem que se faz presente no seu modo arrastado, materializada na persistência do que quase não muda e daquilo que só se transforma pela mão de Baixinho, empenhado na recriação em contínuo dos objetos que sobrepovoam a exiguidade do espaço interior:
Enquanto vamos conversando e passeando pelo atelier, as ligações entre aquele espaço e as memórias vão-se desvelando. Aquela mesma loja-atelier é propriedade da família, assim como a loja contígua, outrora também ocupada por Baixinho. Recordo uma imagem difusa, uns anos atrás, quando numa das minhas visitas ao atelier, num final de tarde, vislumbrei uma mulher idosa sentada na penumbra de um dos recantos do espaço interior, junto a uma janela poeirenta ao fundo, ocupada não sei com o quê…enquanto Henrique se entregava ao seu ofício noutro ângulo. Recordo que na altura a sua filha (ou neta?), ainda criança, fazia companhia à avó (ou seria a avó que tomava conta da neta, pensando bem…). Atualizada a memória da mãe de Baixinho que hoje me interpela, outras imagens se imiscuem, suscitadas pela ambiência de profundidade íntima que a envolve como uma auréola de irrealidade, fazendo-me lembrar A leiteira (1658) ou Mulher segurando uma balança (1665), de Vermeer. O atelier-loja, acrescentando-se-lhe a esfera íntima do lar que a imagem evocada me sugere, desdobra-se na minha memória num lugar triplamente liminar: casa-oficina-loja… preservo a lembrança de um sentimento de evasão que as visitas àquele lugar sempre me proporcionavam (os visitantes entravam hesitantes, não sabendo ao certo que papel desempenhar, se o de potenciais clientes, se o de visitantes de uma exposição…ou mesmo se involuntariamente votados ao papel de intrusos do espaço doméstico…por sua vez, Henrique Baixinho, por regra, era, assim como hoje ainda é, parco na abordagem, mantendo-se reservado). Vasculhando as prateleiras numa das paredes laterais ao fundo do atelier, surpreendo-me com uma prateleira de porcelanas antigas destoando no conjunto dos objetos expostos. O amontoado geral impedira-me, inicialmente, de dar relevância ao detalhe. Henrique esclarece-me, dizendo que se trata de objetos que sobraram de uma loja de família e que estão ali para recordação: “ninguém os vai comprar porque são muito caros”, apressa-se a acrescentar. Frente aos meus olhos vejo, não o stock esquecido de uma loja, mas antes uma espécie de “cristaleira” com o que terá sobrado de uma sala de jantar familiar. Além do mais, avanço no espaço à espera de surpreender alguém a tomar o pequeno-almoço, talvez ainda estremunhado e de pijama… à semelhança de uma cena que me fora contada, experienciada por um visitante de uma casa-galeria em Berlim, por volta dos anos 80… (Nota de campo, 16 de agosto de 2021, Caminha)
Contaminada pela sensação de suspensão que ali tudo impregna, penso no modo como os objetos, dada a sua natureza inanimada, parecem aproximar-se (e aproximar-nos) com facilidade da poética do tempo. Em Pascal (2004), o tédio surge no contraponto do desejo e da comunicação. Esta ideia encontra parcialmente confirmação no universo de Baixinho. Ali, os objetos comunicam entre si, ligam-se a memórias, assim como a expectativas futuras. O aborrecimento que a passagem do tempo produz em Henrique anima-o, paradoxalmente, a procurar estratégias de contorno. Também ali, na oficina, continua a remar, sem parar, ao sabor de um mar feito de animais-objeto, de candeeiros-objeto… Rema com vagar. Não importa partir, nem chegar. Importa a duração. E o recomeço:
Segue-se o relato pontual de inúmeras pequenas histórias que acidentalmente são despoletadas de cada vez que aponto o dedo a uma peça – “E esta?”. “Esta foi feita com uma bicicleta da minha filha – ela nem sabe que a tem aqui”. Reparo que a palavra “princess” permaneceu impressa no guiador. Imagino que no original a peça metalizada fosse de tom cor-de-rosa, antes de ser pintada de preto. A dita “escultura” convive com uma secção de objeto-candeeiro, uma das únicas séries “utilitárias” do autor, feita com base na reutilização de farolins, e que ultrapassa a estrita função decorativa.
Do rol de relatos recordo também a referência a uma cliente que encomendara um mocho – “porque gosta de mochos”. De resto, de certo modo encontramos no atelier de Baixinho um mini jardim zoológico inanimado: gatos, cães, mochos, aves, baleias…predominando claramente a escultura figurativa. Singular é o caso da cobra, desenhada primeiramente pelo mar e depois por Henrique. A visita acaba quando finalmente saio porta fora com um gato preto de madeira nas mãos. Henrique, a meu pedido, acrescentara-lhe um gancho para pendurar. Afasto-me a matutar… que utilidade dar ao gato? (Nota de campo, 16 de agosto de 2021, Caminha)
Helena Pires, Caminha, Moledo do Minho, agosto de 2021
P.S.: No verso de um postal, com desenho alusivo ao remo, que Baixinho me ofereceu na altura da visita pode ler-se: “Homenagem do concelho de Caminha a todos os antigos e actuais remadores do seu mais prestigiado clube e muito especialmente ao seu atleta Henrique Jorge Capela Baixinho por ser o mais completo e internacional remador Português de todos os tempos”.
Referências bibliográficas:
Heidegger, M. (2007). Los conceptos fundamentales de la metafísica. Mundo, finitud, soledad. Madrid: Alianza.
Heidegger, M. (2005). Ser e tempo (Parte I). Petrópolis: Editora Vozes.
Ordine, N. (2018). A utilidade do inútil. Matosinhos: Kalandraka Editora.
Pascal, B. (1977/2004). Pensées (Édition de Michel Le Guern). Paris: Gallimard.
Svendson, L. (2006). Filosofia do tédio. Rio de Janeiro: Zahar.
LOCALIZAÇÃO
LOCAL: Caminha
LATITUDE: 41.8739
LONGITUDE: -8.84055