Sobre o graffiti e a publicidade

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O graffiti é, todos sabemos, uma forma de expressão antiquíssima. Esta é, também, uma manifestação comunicativa que abrange distintas fórmulas, objetivos e técnicas, que acompanham a história da humanidade. Se, atualmente, o graffiti urbano que se tornou dominante é executado a marcador ou aerossol, tempos houve em que as tintas ou objetos contundentes e afiados serviram para marcar os muros e paredes. Recuando na história e pegando apenas no caso das sociedades Ocidentais, encontramos vários exemplos de graffiti na antiguidade clássica, em Pompeia ou Roma (Baird e Taylor, 2016; Dickinson, 2014). É conhecida, também, a tendência de muitos viajantes e turistas do século XIX, para assinarem o seu nome em muitos dos locais e monumentos visitados. Uma limpeza no coliseu de Roma revelou um conjunto de graffiti antigos, bem como a sobreposição de uma série de graffiti bem mais recente de visitantes que foram deixando a sua marca, como o caso de J. Milber de Estrasburgo, que por aqui passou no ano de 1892 (Williams, 2013). Também conhecidos são os casos de graffiti deixados por militares em contextos bélicos, como a inscrição de “James Cockburn 8th Durham L.I.” com a data de “1 de Abril de 1917”, encontrada numa passagem subterrânea em França. Anos mais tarde, o olhar artístico do fotógrafo Brassai debruçou-se sobre distintas formas de graffiti existentes em Paris. A sua série fotográfica iniciada nos anos 30 ficou famosa, dando origem a um livro (Brassai, 2002). Longe vão os tempos que acolheram estes exemplares de graffiti. Tal não significa que os motivos mais profundos que estão na sua origem se tenham evaporado. Antes pelo contrário, a proliferação do graffiti urbano que hoje encontramos em cidades dispersas pelo planeta significa uma espécie de vitória de uma forma de expressão que historicamente tem sido desvalorizada e denegrida.

Neste breve ensaio pretendo cingir-me ao graffiti que, entretanto, se globalizou e tornou hegemónico e que, de uma forma genérica, podemos denominar como graffiti de tradição Norte-americana. Este modelo de graffiti surgiu nos EUA na década de 60, tendo-se rapidamente expandido pelo planeta, à boleia dos media e das indústrias culturais. Aquilo que se encontra na base desta forma de manifestação urbana é a mesma pulsão que animou os turistas do século XIX ou os soldados que intervieram na primeira ou segunda guerra mundial. Este imperativo de presença e existência que leva a que os sujeitos deixem a sua marca no espaço, seja através da sua assinatura, seja através de símbolos diversos. O mesmo se passa com o graffiti norte-americano, que se resume, nas suas origens, à execução massiva de uma assinatura no espaço público (Campos, 2010). Realizado essencialmente por jovens, esta cultura graffiti em ascensão assentava na criação de uma marca identitária, o tag, que servia como pseudónimo e nome de guerra do seu autor. “Taki183”, um dos primeiros a fazê-lo, afirmou numa entrevista realizada na última década (Kennedy, 2011) “We did it because there was nothing else to do, and it was easy to do it. We were just killing time.”

Esta forma de graffiti foi, desde logo, considerada uma praga urbana e um ato de vandalismo que era imperativo combater. No entanto, aquilo que pretendo aqui discutir são as proximidades entre o graffiti e a publicidade urbana, duas expressões comunicacionais urbanas aparentemente antagónicas. Na verdade, há uma distância imensa entre estas manifestações, quer naquilo que significam, quer nos seus objetivos e natureza simbólica. O graffiti é, por tradição, uma expressão popular, maldita, disruptiva, anti-poder e desinteressada. Pelo contrário, a publicidade é uma linguagem de poder, capitalista e sedutora. Porém, não obstante estas divergências, há algo que as liga. Desde logo, o graffiti norte-americano floresceu no seio da sociedade mais capitalista e consumista do século XX. É descendente da cultura de massas, da massificação da publicidade e da sobreposição entre a cultura popular, a indústria e o consumo. É, por isso, fruto de uma cultura visual híbrida, paradoxal e mutante. Por seu turno, a publicidade está francamente omnipresente nas cidades norte americanas, desde a década de 50 do século XX, marcando o espaço público e o “urbanismo vertical” (Tripodi, 2011) de cidades como Nova Iorque. Joga, por isso, no domínio da visibilidade. E a cultura graffiti aprendeu este jogo. Também procura conquistar um espaço de visibilidade, criar uma marca, disseminá-la pela cidade, tornando-a famosa. Este imperativo da fama e do reconhecimento é algo que o graffiti-writer procura para o seu pseudónimo, tal como qualquer corporação com as suas marcas e logos. Daí que o graffiti que tem impacto é aquele que está mais alto, mais visível, que se destaca na paisagem urbana (foto 1, foto 2 e foto 3). Tal como a publicidade urbana, aquilo que ambiciona é captar o olhar do transeunte. E para tal utiliza uma série de estratégias que, em grande medida, se inspiram na cultura visual contemporânea, na qual a publicidade desempenha um papel importante. Facto é que, desde os seus primórdios, imagens inspiradas nas indústrias culturais, nos media e na publicidade fazem parte constante dos murais a graffiti, como demonstram bem as fotografias presentes no livro clássico de Cooper e Chalfant (1984).

No entanto, esta também é uma relação atribulada de disputa. O facto do graffiti e da publicidade urbana habitarem um espaço comum, significa que competem neste campo de visibilidade. Como tal, não é raro encontrarmos casos em que o graffiti parasita as estruturas publicitárias, apropriando-se do seu campo de visibilidade (foto 4). Noutros casos, o graffiti ataca deliberadamente a publicidade, tomando-a como antagonista nesta arena comunicacional sobrepovoada que é a cidade. Também não é de estranhar que a publicidade tenha não apenas mimetizado o graffiti, mas que o inclua em muitas das suas campanhas comerciais reconhecendo, desta forma, o seu impacto e importância no panorama das estratégias de comunicação contemporâneas. Não são de todo desconhecidas as campanhas de marcas de cerveja, automóveis e outros produtos e serviços que instrumentalizaram a estética do graffiti e da street art para venda de produtos.

Em todo o caso, aquilo que encontramos é uma relação ambivalente, que foi alimentada ao longo de décadas. Provavelmente iremos continuar a assistir ao longo de mais algumas décadas a esta relação próxima, paradoxal e mimética, em que ambas as linguagens se confrontam e parasitam.

Por Ricardo Campos, 06/2019

Referências

BAIRD, J.A. & Claire TAYLOR (2016), “Ancient graffity”, in Jeffrey Ross (org.), Routledge Handbook of Graffiti and Street Art, Londres e Nova Iorque, Routledge, pp. 17-26

BRASSAI, G (2002), Graffiti. Paris, Flammarion.

CAMPOS, Ricardo (2010), Porque pintamos a cidade? Uma abordagem etnográfica do graffiti urbano. Lisboa, Fim de Século.

COOPER, Martha & CHALFANT, Henry (1984), Subway Art. Londres, Thames & Hudson.

DICKINSON, James (2014), “The writings on the Wall: an ABC of historical and political graffiti”, in Clara Sarmento e Ricardo Campos (Org.), Popular and Visual Culture: Design, Circulation and Consumption, Newcastle upon Tyne, Cambridge Scholars Press, pp. 39-58

KENNEDY, Randy (2011),“Celebrating Forefather of Graffiti”, The New York Times, JULY 22, 2011, http://www.nytimes.com/2011/07/23/arts/design/early-graffiti-artist-taki-183-still-lives.html

TRIPODI, Lorenzo (2011), “Cidade de telas. Notas para um urbanismo vertical”. In: CAMPOS, Ricardo; BRIGHENTI, Andrea Mubi; SPINELLI, Luciano (org.). Uma cidade de imagens. Produções e consumos visuais em meio urbano. Lisboa, Editora Mundos Sociais.

WILLIAMS, A. R. (2013), “What Does First-century Roman Graffiti Say? Work at Rome’s Colosseum turns up 2,000-year-old scrawling.” NATIONAL GEOGRAPHIC NEWS, https://news.nationalgeographic.com/news/2013/13/130129-roman-italy-graffiti-colosseum-archeology-photo/

LOCALIZAÇÃO

LOCAL: Lisboa

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