A espera: o Deserto dos Tártaros de Dino Buzzati
Janelas: uma palavra que alcançou, em tempos de pandemia, o estatuto de universo. Mais do que um objeto, com especificidades próprias e materiais, janela é salto, ponte entre presente e futuro. Entre janelas, a sociabilidade, o passeio, a comunicação foi conservada – por sobrevivência.
A rua, o espaço público, deslocalizou-se do terreno, de pedras e calçadas, e foi suspensa para quadrados – abertos para o mundo – dispostos em edifícios diversos de tamanho e estilo. As varandas comprometeram-se a expandir a sua utilidade. Em suma, a sua essência.
A plasticidade de objetos, lugares e pensamentos, foi esticada e reinventada à exaustão. Ideia, de resto, já enunciada em ano cheio, dois mil, limítrofe como o corrente pelo poeta Manoel de Barros: “é preciso desinventar objetos”.
Em contexto de pandemia, janelas e varandas foram reinventadas. Mas com a dilatação do tempo, em que o que se confinou almeja pela saída, há uma palavra que permanece imutável: a espera.
Espera e expectativa mesclam-se, misturam-se e criam caminho para uma aproximação maior à Cultura, à Arte. O escritor Gonçalo M. Tavares pergunta-nos no Diário da Peste, que notícia tatuarias na tua testa para que todos lessem. Talvez não uma notícia, mas uma palavra: espera. Numa dupla significância: de conter o outro (espera!) e de proteção do coletivo. Esperamos.
É esse o fio que encadeia o oficial Giovanni Drogo, protagonista do romance de Dino Buzzati, O Deserto dos Tártaros. Giovanni ruma à Fortaleza Bastiniani. Uma relação com o espaço mediado pela ambiguidade. Decide ficar, embora tenha decidido sair. A misteriosa fortaleza é atração em forma de promessa.
Giovanni Drogo está contaminado. Bastiniani, a magnética fortaleza, hipnotizou-o.
Dentro de fortalezas privadas, ensaiamos os primeiros passos para o encontro com os destroços de tempos ainda suspensos. Assim, como as varandas e janelas. Sentinelas, somos guardiões das senhas e contra-senhas (Candido, 2010) para a rotina diária de nossas fortalezas: os tártaros do deserto, invisíveis, são o vírus dos dias que passam a conta gotas.
Em camadas sobrepostas, como o palimpsesto, reconstruimos as expectativas, mantendo uma fina película de transparência que revela uma linha de transmissão de sentimentos difusos. Calcada na supressão do tempo e do espaço, garante a sensação de uma continuidade: um texto pode sempre ler um outro, e assim por diante, até ao fim dos textos (Genette, 2010).
Pressupõe-se a finitude? Talvez, não. Exercita-se a espera. Giovanni Drogo “deita mais um olhar para fora da janela, uma olhadela muito breve para arrecadar o seu derradeiro quinhão de estrelas.”
De soslaio, olhamos pelas varandas e janelas, e redefinimos a senha e contra-senha para sair.
Referências
Barros, M. (2000). O livro das ignorãças. Rio de Janeiro: Record.
Buzzati, D. (1984). O deserto dos tártaros. Amadora: Cavalo de Ferro Editores.
Candido, A. (2010). O discurso e a cidade. São Paulo: Ouro sobre Azul.
Genette, G. (2010). Palimpsestos: A literatura de segunda mão (pp. 11-23). Belo Horizonte: Edições Viva Voz.
Por Viviane de Almeida
São Pedro do Sul, 29 de maio de 2020