30 Jan, 2021

Visões lilliputianas da cidade da minha infância

Não há nada de especial em não nos orientarmos numa cidade. Mas perdermo-nos numa cidade, como nos perdemos numa floresta, é coisa que precisa de se aprender. Os nomes das ruas têm então de falar àquele que por elas deambula como o estalar de ramos secos, e as pequenas vielas no interior da cidade mostrar-lhe a hora do dia com tanta clareza quanto um vale na montanha. Aprendi tarde essa arte. (Benjamin, 2013, p. 65)

Quantas cidades habitámos na nossa infância? Que recordações delas guardámos? Às cidades da nossa morada, somam-se as cidades ficcionadas, onde vivem personagens invencíveis – recordamos as cidades portuárias de Génova e Buenos Aires em Marco dos Apeninos aos Andes, série de desenhos animados que marcou a geração de 70 -, mas também aquelas feitas (e desfeitas) de Lego, e ainda as inventadas, nos desenhos, nas redações da escola, ou projetadas na nossa imaginação. Na nossa infância, cada cidade (de verdade) é um oceano de sensações, mas também um campo de possibilidades. Caminhando pela rua, a reboque de uma mão adulta que nos mantém “algemados”, imaginamo-nos numa infinita passerelle de cores vibrantes, inundada pela fumaça e cheiro a castanhas assadas, pelos manequins nas montras que nos prometem visitas inesperadas nas noites mal dormidas, e sonhamos escalar, um dia, os lampiões da calçada ou os altíssimos prédios que nos hão-de levar a avistar o mundo inteiro, a partir de cima. A cada esquina, desenrola-se um novo tapete de curiosidades. Os canteiros são jardins e os jardins florestas ou campos, de dimensões lilliputianas, ao mesmo tempo que se agigantam, à medida que os exploramos, desta vez correndo com o coração à solta e os braços a fazerem de asas. Subitamente, a nossa aventura tropeça n’ As Viagens de Gulliver:

Fui dar a uma estrada principal, ou assim me pareceu, embora, para os habitantes daquele sítio, não passasse de um carreiro ao longo de um campo de cevada. Segui por ele durante algum tempo, ainda que pouco conseguisse ver para ambos os lados, visto tratar-se da época das colheitas e a cevada ter, pelo menos, quarenta pés de altura. Levei uma hora até chegar ao fim deste campo, onde deparei com uma sebe a servir de muro com mais de cento e vinte pés de altura e árvores cujo tamanho me era impossível calcular. (Swift, 1726/2018, p. 135)

Revisitar os chafarizes, os parques, as casas, as gares da cidade da nossa infância, é como revisitar um tempo perdido, à maneira proustiana, passear pela mão das memórias involuntárias, felizes umas, indesejadas outras. São memórias disruptivas, porque quebram a linearidade temporal e nos fazem andar para trás, encontrando aí, e não no tempo presente ou vindouro, o potencial utópico dos nossos sonhos. Recordando a cidade da nossa infância, redescobrimos “o súbito reencontro com um mundo que sobrou como um presente esquecido no nosso quarto, um depósito de um futuro que ainda está por vir” (Leslie, 1999, p. 64). Que recordações, que fantasmagorias de infância, que visões terão levado Le Corbusier a desenhar a sua Cidade Radiante?

A época natalícia convida a revisitar o álbum das nossas memórias perdidas, outros tempos e outros lugares, a recuarmos até às nossas visões de infância, ornamentadas por ambiências de diferentes rituais e credos, imagens povoadas de desejos e desilusões. É, pois, nesta altura, que a Passeio desafia todos os recordadores-sonhadores a partilharem a lembrança que guardam da(s) cidade(s) da sua infância. Cidade(s) onde viveram invernos, primaveras, dias, instantes, passagens. É na intimidade dos recantos mais microscópicos da casa, como diz Bachelard, em A poética do espaço, que imaginamos a infinitude do universo. E é nas recordações mais difusas e recuadas, acrescentamos, que podemos porventura descobrir alguma esperança, algum alento capaz de nos transformar em arquitetos do futuro, em desenhadores das cidades que gostaríamos de ter por morada:

… como as fundações das cidades traem as fissuras e as fraturas de uma decomposição acelerada. Usar a construção da criança ou da criança ‘como se’ é uma forma de retornar ao passado, a fim de sugerir uma técnica para imaginar e então romper com esse passado. Ao escrever e relembrar, ele prevê uma possibilidade em que o vislumbre inicial de uma relação nova, utópica e ‘mítica’ entre a criança e o novo cosmos tecnológico fornece um impulso para a mudança, uma ‘esperança no passado’. (Leslie, 1999, p. 61)

Com esta nova temática (a cidade da minha infância), no seguimento das exposições temporárias – Itinerâncias – que a Passeio tem partilhado na sua Galeria, convida-se à submissão de propostas de micro-ensaios (1500-2000 palavras), podendo os mesmos ser acompanhados de imagens/áudio, tendo em vista a sua publicação no site do projeto.

 

Prazo: 30 de janeiro de 2021

Email para envio: passeio@ics.uminho.pt

Assunto (na caixa de email): Itinerâncias cidade-infância